74 degraus abaixo de mim mesmo

De repente me deu vontade de ler um livro curto, um livro em que eu pudesse começar e acabar a história ali mesmo, de uma vez, como uma boa trepada, nada de promessas de felicidade para o futuro, nada de romances, um livro de contos, de crônicas talvez. Mirei bem a estante. Rubem Fonseca: Feliz ano Novo. Já o li uma vez, há muito tempo, mas sinceramente não lembro de o ter comprado. Eu consigo lembrar-me das circunstâncias da compra de todos os meus livros e todos os meus CD’s. Onde comprei, quando, como. É uma velha mania, e como toda mania, não serve para nada. Mas é minha. Rubem Fonseca, meu doce assassino. Era o que estava procurando. Vários contos pequenos. Abri aleatoriamente, “74 DEGRAUS”. Na primeira página havia algumas palavras escritas a lápis: “Violência como desvio de conduta p/ chegar à felicidade”. Por isso não lembrava de ter comprado este livro, de fato não o comprei, herdei, da Júlia, sem ela saber, claro. Passei o dedo sobre aquelas letras, como se acariciasse a mão que escreveu. Aquelas letras tinham cheiro, e não era o do velho livro. A Júlia era inteligente, sensível, linda e perspicaz. O que é possível fazer para se perder uma mulher como ela? Não tive mais vontade de ler. Suas palavras me serviram de oráculo: desvio-felicidade. Me senti um pouco tonto, sentei na poltrona. Caíram duas ou três lágrimas. A Júlia perdeu seu livro do Rubem, perdeu 74 DEGRAUS, perdeu para sempre algumas rabiscos a lápis. E eu achei esta agonia, que não era para agora...