Na mesma Estrada
Um dia, pensei em perguntar a ela:
- Por que me incomoda?
Mas sabia que não teria a resposta que desejava ouvir.
Desde muito pequena, ela estava ali, ao meu lado, sugando minhas ideias, não importava qual delas: soprava as boas e as más.
Às vezes, parecia uma janela de liberdade. Quando eu pensava na possibilidade de escorregar em um arco-íris, ou em jogar pedras em galinhas, às vezes parecia minha carcereira, pois sempre me impedia quando eu pensava em fugir de casa e somente deixar um bilhete dizendo que nunca mais voltaria, ou em soltar os cães da vizinha que tinham a cara de triste. Hoje, adulta, vejo que todo buldogue tem cara de triste. Deviam colocar uma boca de plástico neles, pintadas de vermelho como fazem com os palhaços; assim pareceriam ter uma vida mais feliz!Mas quando eu era criança, ela sussurrava em meus ouvidos:
- Vá até lá! Solte-os! Eles estão tristes!
Mas eu tinha medo de mordidas e não a respeitava. E ela ficava dias mal-humorada, me fazendo fazer coisas ainda piores. Assim, por conta dela, soltei muitos passarinhos da minha irmã; enão era ela quem apanhava, era eu. A desculpa era sempre a mesma:
- Abri para colocar a comida e fugiram.
O descuido me deixava em intermináveis castigos de quase duas horas. Até nos castigos lá estava ela, sempre ao meu lado, me consolando...
- Vai passar, vai passar...
Ela me visitava à noite e me levava a lugares incríveis, psicodélicos, medievais, dinásticos, grandes torneios de Golf, me visitavaaté mesmo quando eu queria ficar só. Eu chorava, colocava a cabeça nos travesseiros, mas ela estava lá também, me atormentando, soprando ideias em meus ouvidos, que acabavam virando histórias que tomavam forma em minha boca. Para os adultos,pareciam até mentiras. Só isso, apenas mentiras aos ouvidos dos outros, histórias de uma menininha inventiva. Mas, para mim, eram a mais pura verdade.
Nos momentos de solidão, essa era a hora em que ela mais gostava de ficar ao meu lado: me velava, empurrava, me distraía. Eu queria não ouvi-la, queria fugir dela. Uma vez, saí correndo tão rápido de olhos e ouvidos tampados para não ouvi-la que tropecei no tapete e dei com a cabeça na pequena mesa de mármore que adornava nossasala elá fui eu ganhar pontos em um hospital. Lá na emergência, ela entrou do mesmo jeito, gritando em minha cabeça. Queria eu que me dessem um remédio para dormir, um calmante qualquer da vida, para dormir por todo o sempre e acordar somente quando chegasse ao país das maravilhas.
Ela estava sempre me perseguindo. Estava lá quando comecei a gostar de um menino; estava lá quando beijei, quando amei pela primeira vez. Quando estudava horas intermináveis para o vestibular, tentava aprisioná-la e em uma fase, em uma crio-prisão, eveio a fase em que ela me sacudiu e disse:
- Me acompanha!
Foi uma fase difícil. Ela queria sair de casa todos os dias, queria a noite, queria o cheiro da madrugada,queria cheiro de cigarro e bocas de cerveja com bala, queria olhares desejosos,roupas apertadas, calçados. Tudo que era supérfluo a seduzia. Não me deixava em casa sossegada, nem um dia sequer. Esta foi a fase mais difícil de conviver com ela.
Ela era grande: era tufão, era deserto. Queria tudo e não queria nada. Para mim, era um enigma. Só muito tempo depois, fui entender que ela era somente uma peça do quebra-cabeça.
Ela estava ali o tempo inteiro, vagando, flutuando, querendo um alicerce. Eu me negava, sem medo, a ser este alicerce. Fugia dela. Não queria seu futuro, não queria seu álibi. Eu,definitivamente, não era da sua laia. Quando dei conta, vi quem eu era para ela: eu era sua caverna, sua Canaã, seu El Dourado.
Em algum momento, algum ser divino prometeu a ela meu corpo, minha cumplicidade, minha boca, meu sexo, minha carne, minha mente. Mas eunão queria ser sua sombra! Quem era eu afinal? Quem era ela?
Um dia, descobri que havia outro ser dentro de mim, uma vida: eu seria mãe! Equem seria ela? Onde ela habitaria, se insistia otempo inteiro em viver dentro de mim?
Decidi, então, me render aos seus encantos. Sentei-me frente a frente com ela, como frente a um espelho. Falei meus medos, minhas angústias, meu medo de sentir dor no parto, meu medo de produzir leite como uma vaca que só come capim no pasto. Pedi colo e ela me acolheu.
Meu ar era seu ar, meu nome era seu nome, meus movimentos eram seus movimentos; deixei que ela se apossasse de mim, suguei sua força como uma erva seca espera pacientemente a gota de orvalho que insiste em adormecer somente nas folhas mais altas, para se deixar cair leve e suavemente pela manhã, criando um tipo de dependência.
De repente, ela tornou-se minha algoz. Era ela quem tomava as decisões, era ela quem me contava os passos, era ela que me dava uma inquietude que não me dava abrigo. Mas como pode? Era eu quem lhe dava abrigo! Não podia aceitar o contrário! Decidi mais uma vez sentar com ela, conversar, mostrar minha força, meu trabalho, meus punhos fortes. Mostrei quem mandava na situação; mostrei que era eu quem decidia, que suas palavras não seriam mais ouvidas como ordem e sim como sugestão. Ela, carente, sofrida, desnuda de sentimentos, de valentia, me admirou.
Antes, eu a via como um grande touro, indomável, enfurecido. Hoje, eu a vejo como o mais terno dos unicórnios, rara, leve, enigmática.
Antes, ela me via como rocha, firme, aguentandotoda a bravura do mar de medo, angústias, solidão, maternidade. Hoje, ela me vê como água, com fluidez pelos obstáculos da vida. Não tento derrubá-los simplesmente tentando passar por eles, de forma, às vezes, tão sutil que ninguém percebe, às vezes em uma corrente marinha tão rápida que quando ela percebe, eu já passei...
Quando comecei a escrever,lá veio elanovamente,palpitando, me sugerindo coisas, muitas até inteligentes - tenho que concordar! - muitas exageradas demais, vividas demais; podem ferir os inocentes.É melhor não dar ouvidos,descartar, mas sempre ali, ao meu lado. Já me pediu para matar, já me pediu para poupar, já me pediu para roubar, já me pediu para perdoar, já me pediu para acolher, já me pôs de joelhos a rezar por algo que eu não via, mas sentia.
Quando penso que me abandonou, lá vem ela, sugerindo uma nova decoração para o quarto das crianças, ou me dizendo:
- Não beba desta água! Pode estar suja.
E eua contrario, enfrento-a, bebo tudo, em sua frente; deleito-me em braços que me fazem feliz, sem nem ao menos me importar com o que ela pensa. Simplesmente a ignoro. Quando ela começa a insistir, em ter voz, ter forma, ter som, vou ao papel, dou a ela uma caneta e digo...
- Vá... coragem... escreve! Não ponha mentiras em minha boca, ponha verdades em meu papel. Não ponha peças fáceis em minhas mãos, ponha as peças mais difíceis de encaixar para aguçar minha mente a pensar, refletir, escolher, raciocinar.
Um dia,tentei libertá-la da minha caverna. Achava escura demais. Não era o lugar dela. Dei a ela o caminho para sair do meu labirinto...
Na porta,ao nos despedirmos. Eu disse:
- Depois de tanto tempo...Sabe que gosto de você.
Ela replicou:
- Também gosto de você.
Perguntei:
- Sabe quem sou?
Ela me respondeu:
- Você é Tufão.
Eu proferi:
- Imagine, louca! Sou brisa.
Ela disse:
- Você é Mistério...
Eu contestei:
- Eu, o mistério? Você sempre foi o meu maior enigma.
Ela proclamou:
- Você éTormenta, Rocha, Aço.
Retruquei:
- Sou água, ar, silicone moldável.
E ela:
- Sou o anoitecer.
- Sou o amanhecer... - eu contradisse.
Olhamos uma nos olhos da outra, sem entender que nunca nos separaríamos. Éramos o que precisávamos ser. Éramos o peso e a medida. Éramos a razão e a emoção, a paixão e o ódio, a segurança e o tremor. Éramos duas metades em um só ser: éramos letra, éramos prosa, éramos sentimentos, éramos versos.
Estendi a mão e pronunciei:
- Me diga de verdade... Quem é você?
Ela me olhou com olhar surpreso e declarou:
- Seu amadurecer.
Andamos juntas e, pela primeira vez, pensando apenas em dias melhores.
Nós nos localizamos quase quatro décadas depois de nosso primeiro encontro.
Entendi que meu enigma era somente meu amadurecimento lutando para sair da minha própria caverna.
Nós nos percebemos, nos tocamos, rimos, choramos, minha voz interior, meu enigma, meu eu e eu, ali... Agora, na mesma estrada!