A seu lado
No seu mundo as bonecas ficavam à porta, ou melhor, cuidadosamente arrumadas em cima da cama por vontade expressa da mãe. Achava-as estúpidas no seu olhar vazio. Limitavam-se a ser bonitas e as respostas que davam às suas tentativas de diálogo eram como elas, sem grandes rasgos e…óbvias. Já com os bichinhos a coisa era outra. Poderia, por exemplo, recomendar um novo percurso às formigas mas admitia que tinham opinião e acabava por as respeitar. Ver sem interferir, aprendeu. O seu fascínio era apreciar a natureza nas criaturas que habitavam o quintal e o pequeno jardim. Lagartixas, formigas, joaninhas, centopeias, lagartas, borboletas ou, eventualmente, os pardais e os melros, os gatos da vizinhança, o Piloto. Para as observações mais apuradas usava a lupa do pai e achava os pormenores deliciosos. Cresceu livre, um tanto à margem das convenções para grande desgosto de sua mãe. Ainda assim a sua beleza chamava a atenção e ao Renato não bastavam os olhos para a muda admiração. Queria falar com ela, pegar-lhe nas mãos, amá-la …. Enfim, aprazado o encontro, na esplanada central da terra e já em frente às chávenas de café, vivendo silêncios e palavras de ocasião, Matilde via o labor de três formigas, no tampo vermelho da mesa de ferro, a transportar os minúsculos grãos de açúcar derramados. Renato esmagou, com o indicador, a primeira que viu, quase automaticamente. A moça, recalcou a indignação e soprou as outras duas para as salvar. Em vão. Renato em dois golpes certeiros acabou com as outras formigas e abriu, alarve, um sorriso feliz. Matilde, desgostosa, levantou-se e saiu a correr sem olhar para trás. O mundo que estava na disposição de partilhar não existia para ele.