Reminiscências de uma bala perdida

Um clique, pronto! Ela estava na culatra do fuzil k20, o cano era como um longo túnel; percebia as raias em espiral que a fariam girar a grande velocidade. Finalmente! Quanto tempo ela esperou a sua vez, ela chegara, estava na culatra, agora era uma questão de tempo, e estaria livre e solta para cumprir sua missão. Como esquecer, o ar de despeito de suas companheiras, lembrava-se perfeitamente das conversas, quando ela foi guardada naquela gaveta com as outras, por mais que quisesse ignorar não podia deixar de ouvir: Ela esta bem velhinha. Ou: Essa tem mais de cinco anos, o que ela está fazendo aqui? Com certeza se for disparada não terá forças para sair. Sim esses eram os comentários, lembrava-se muito bem de sua historia de vida. Fazia parte de um grupo de seis que foram compradas no mercado paralelo e esquecidas em uma gaveta por mais de três anos. A partir daí de vez em quando alguém abria a gaveta e pegava uma delas, até que restou ela e mais duas, Depois de um bom tempo, quanto tempo não sabia precisar, a gaveta foi novamente aberta, talvez um mês, dois? Bem não importava o tempo, mas importava sim, que naquela vez duas foram apanhadas e ela ficou sozinha. Um bom tempo passou, já tinha perdido a esperança de ser utilizada. Mas um dia, a gaveta foi novamente aberta e desta vez foi para no bolso de uma camisa. Que gloria! Um dia para nunca ser esquecido, ela e mais ninguém. Mas logo a felicidade terminou lançada em outra gaveta, com centenas de balas iguais a ela, todas novinhas reluzentes, ela, bem não adiantava reclamar, estava convencida de que seu destino seria o lixo e jamais seria disparada.

Mas o milagre aconteceu, não passara alguns dias, a mesma foi aberta, uma mão apareceu e pegou varias, imagine, ela estava nesse meio, sim ela estava novamente na mão de um homem, que as colocou em cima de uma mesa, e foi pegando uma a uma e depositando-as no pente do fuzil K20, uma, duas, três, quatro... Ela começou a ficar desesperada, uma atrás da outra era apanhada e colocada no pente, mas ela rodava, rodava em cima da mesa, a mão não a apanhava, pegava a do seu lado, mas ela não. Há se pudesse gritar com todas suas forças, reclamaria seus direitos de bala, mas opa ela foi pega, acreditem ela foi pega e foi a ultima, a ser acomodada no pente, sentiu um calafrio, ela ficara, dizendo no popular, na boca do caixa, e sua excitação aumentou quando o pente foi encaixado na arma, o fato era incontestável, ela a rejeitada, mal falada pelas companheiras de gaveta, sim ela a velhinha, que já tinha o dourado de sua cápsula descorado, sim ela seria a primeira a ir para a culatra do fuzil, e a primeira a ser disparada. Percebeu todo o percurso a seguir, até o barulho do motor do carro, depois o silêncio e mais alguns minutos ouviu claramente o clique, pronto, ela estava na culatra, agora até o disparo era uma questão de tempo, até que este tempo passou rápido.

Sentiu o movimento da arma, lá no final do cano ela via claramente as cenas que passavam até parar em um homem a uns trinta metros de distância, que gloria, agora teria início todo o ritual da mira, que parou na cabeça do homem, ela via perfeitamente o rosto da vítima, ficou um pouco inquieta, o atirador mirava na cabeça, e ela torcia para que o mesmo fosse bom no tiro, pois daquela distância teria que ser um bom atirador, convenha, uma cabeça não é uma área grande que facilite o tiro, mas entre ficar esquecida em uma gaveta e estar ali pronta para cumprir seu destino, não cabia dúvidas, ela iria para o tudo ou o nada.

Mas espere o que está acontecendo? O atirador abandonou a posição de tiro, agora o que ela vê é o chão, não é possível que isto esteja acontecendo, o medo da arma ser descarregada por haver desistência do tiro, a deixou apavorada, com certeza voltaria para a gaveta e seria motivo de chacota, não, não, ela não merecia isso, mas, mas, opa, opa, o chão desapareceu e lá estava bem na frente do cano novamente, a rosto do homem, tinha certeza de que era o mesmo, pois gravara sua fisionomia. Ah! Agora não teria erro, ela iria penetrar naquele rosto odiento, não sabia por que, mas odiava aquele alvo, tal ódio talvez residisse no quase cancelamento do tiro, no fundo sabia que o alvo ignorava sua angustia, mas ela tinha que descarregar em alguém seu temor de não ser disparada. Já se passara uns segundos e o atirador mantinha a mira no rosto do alvo, poderia jurar que sentia a pressão do dedo do atirador no gatilho, ela já não pensava em nada a não ser no voo até aquela cara nojenta e penetrá-la arrebentando-a toda.

Não é possível, o foco da mira desceu para o pescoço, espera aí! Agora é demais, acertar no pescoço, será que o atirador, seria de elite, capaz de acertar uma mosca daquela distância? Ela queria acreditar nisso, precisava acreditar nisso, mas espere a mira esta mudando novamente, esta descendo devagar, muito devagar, agora está no peito, vamos, vamos, atire no peito, não tem como errar, por favor, atire, atire...

Mas para seu desespero a mira não parou de descer, devagar, muito devagar e parou na altura do ventre, bem, menos mal, naquela barriga não tinha como errar, talvez o atirador fosse um sádico, pois ela faria um estrago no abdome do alvo e a morte seria lenta com muito sofrimento.

Sentiu-se segura, tinha certeza de que o tiro não seria abortado, percebeu a pressão do dedo no gatilho, sentiu a percussão, e a violenta pressão que a impulsionou para dentro do cano, sentiu seu corpo acomodando-se nas espiras, o giro aumentando à medida que percorria toda extensão do cano e, enfim livre voando girando em busca do alvo.

Como era bom se sentir livre, realizada, calculou o resultado do disparo e para seu espanto o alvo estava saindo da sua linha de tiro, calculou a distancia e percebeu que passaria a menos de um centímetro do alvo pelo lado direito, o máximo que a vitima sentiria seria um leve calor, ela passaria por ele sem causar danos, caramba, errar um tiro na barriga de alguém a uma distancia de trinta metros, o autor do disparo só poderia ser um amador.

Como tinha previsto, passara pelo alvo, de raspão, sentira o leve contato com a carne, bem agora, ela era uma bala perdida, em sua trajetória perderia sua força e cairia em algum lugar e seria esquecida e destruída pelo tempo, a não ser que...

Viu à frente de sua trajetória, um grupo de jovens, que possivelmente seriam universitários, pois todos estavam na frente da universidade, e o movimento dos jovens era intenso...

Roberto Afhonso
Enviado por Roberto Afhonso em 20/03/2013
Código do texto: T4199005
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