Memorias de uma anciã

Aos quarenta anos conheci o amor. Foi a melhor sensação que tive em toda a minha vida. Como eu não podia mais cuidar da casa e meus filhos estavam crescidos. Tomei por habito caminhar pelas terras da fazenda onde morava. Havia um lugar em particular que eu apreciava. Um pequeno recanto rodeado de arvores que ocultava um pequeno riacho. Ali eu passava horas esquecida da vida, com os pés mergulhados na água cristalina. Certa tarde estava eu distraída e não ouvi passos se aproximando. Grande foi o meu susto ao ver se sentar ao meu lado na grama um sujeito desconhecido. Era um homem alto e bonito. Assustada me levantei, mas por infelicidade meu chinelo esgarranchou na grama e se ele não tivesse me amparado eu teria caído dentro do riacho. Vermelha de vergonha nem agradeci, sai correndo rumo á minha casa. A imagem daquele homem moreno porem, não saiu da minha cabeça. Dois dias depois voltei ao recanto. Esperei ansiosa ate que senti sua aproximação. Meu coração batia descompassado e quando ele me entregou uma rosa, deixei cair de tanto que minhas mãos tremiam. Ele então falou que trabalhava há pouco tempo na fazenda vizinha, e que não queria ser ousado, mas que não conseguira parar de pensar em mim, desde que me vira. Que eu era bela como a santa da folhinha que seu patrão tinha na sala. Eu que em toda a minha vida nunca recebera elogios, fiquei atordoada e feliz. Balbuciei um agradecimento e parti. Durante meses vivi essa paixão. Apesar de nunca ter sido beijada por ele, e de apenas nos darmos às mãos me sentia viva, querida. Ele era um homem sensível. Gostava de poesias e todas as vezes que nos encontrávamos lia para mim. Algumas eram tão tristes que ao ouvi-las, lágrimas escorriam pelo meu rosto. Ele delicadamente as secava com as pontas dos dedos. Tudo ia muito bem, porém comecei negligenciar minhas obrigações. Às vezes esquecia de trocar a agua das criações, lavava de qualquer jeito o chiqueiro, e por um descuido meu uma tarde, um bezerrinho escapou do cercado e foi pisoteado pelas vacas. À noite quando meu marido soube me arrastou para o celeiro e me surrou com o chicote que ele usava para bater nos animais que lhe faziam raiva. Meu vestido se rasgou com a violência dos golpes, e isso o deixou excitado. Há anos ele não me procurava, mas naquela noite ele me derrubou em cima das palhas e me usou com força. Depois de se satisfazer ele saiu e fechou a porta por fora. Fiquei trancada no celeiro durante três dias. Uma das minhas filhas trazia agua e comida que a Mariquinha mandava escondido do meu marido. Uma manha ele simplesmente abriu a porta e mandou que eu saísse, e fosse dar lavagem aos porcos. Sequer olhou em minha direção. Assim que me vi em liberdade fui ao meu refugio secreto para encontrar o meu amado. Pela primeira vez recebi seu abraço e pude perceber o quanto ele sentiu a minha falta. Por não ter me olhado no espelho, não sabia que meu rosto, o pescoço e meus braços estavam arroxeados pela surra que levei. A revolta e o ódio tomaram conta do meu amor e ele jurou matar o meu marido. Implorei para que não o fizesse, pois por pior que ele fosse, era o pai dos meus filhos. Ele então propôs que fugíssemos para longe e eu concordei. Combinamos para dali a dois dias. A expectativa de uma vida nova despertou em mim uma felicidade incontida e meu marido desconfiou. No dia marcado para a fuga esperei as meninas irem para o colégio, os garotos partirem para a roça em companhia do pai, e assim que a Mariquinha foi para a cozinha se ocupar do almoço, peguei minha pequena trouxa de roupas e corri para encontrar meu amado. Estranhei não encontra-lo sentado á beira do rio, como sempre fazia. Coloquei o embrulho no chão e me dispus á espera-lo. O barulho de patas de cavalo me assustou e antes que eu pudesse reagir, apareceram meu marido e meus dois filhos. Pela expressão de seus rostos soube que haviam descoberto tudo. Meu marido saltou do cavalo e me puxou pelo braço em direção á um grupo de eucaliptos. Ali horrorizada eu vi o homem que eu amava morto. Um golpe certeiro quase lhe decepara o pescoço. Gritei com todas as minhas forças, mas um forte soco me derrubou ao chão. Recobrei a consciência minutos depois. Eu estava de novo no celeiro, mas não estava só. Em um canto estavam meus dois filhos e na minha frente meu marido. Ele estava com uma arma apontada para mim e sorria diabolicamente. Olhei desesperada para os garotos esperando que viessem em minha defesa, mas vi em seus olhos o mesmo brilho insano que vi nos olhos do pai. Implorei por misericórdia, chorei, pedi perdão. Meu marido disse duramente que eu ia morrer. Que eu era uma vagabunda. Que ia pagar por ter sujado seu nome. Ele então deu um passo atrás e se preparou para atirar. Nesse momento a porta do celeiro se abriu e a Mariquinha entrou correndo e se colocou na frente. O barulho do tiro foi ensurdecedor e o corpo da minha rival caiu ao chão. Um urro de desespero antecedeu ao barulho do próximo disparo, e meu marido tombou também sem vida. Ele realmente amava aquela mulher e preferiu se matar a viver sem ela. Mariquinha foi seu único e verdadeiro amor. Somente ela conseguiu penetrar naquele coração repleto de maldade. Após toda aquela tragédia, vendemos a fazenda e nos mudamos para a cidade. Os meus filhos se tornaram adultos, e cada um tomou um rumo. Nunca falamos do nosso passado sangrento, mas sei que silenciosamente sempre me acusaram pela morte do pai.Hoje tenho netos, bisnetos que não conviveram comigo e nem foram ensinados a me amar. Quanto aos meus quatro filhos, Sei que esperam ansiosos por minha morte, para venderem a casa onde moro e dividirem o dinheiro. Minha família são meus vizinhos que trazem remédio, alimento e se preocupam com essa idosa de noventa e seis anos. Quanto á mim passo meus dias cuidando de um pequeno jardim. Cada florzinha que nasce é como um novo filho que Deus me dá, e que trazem alegria á esses olhos cansados. Nunca me revoltei contra meu destino, aceito cada dia a mais de vida como um presente do meu criador.