Batom Vermelho
Quando Roderick abriu a porta, ela estava lá fora na varanda, sentada em um banquinho de madeira que ele havia construído para os dias de verão. Vestia-se como um exemplar mais atual de alguém que tivesse vivido na boêmia parisiense nos anos 20. Entre os dedos de unhas pintadas de vermelho, um cigarro. A seus pés, uma maleta gasta, cheia de adesivos e assinaturas. Provavelmente lembranças dos lugares e pessoas que ela havia conhecido.
Roderick contentou-se em observá-la por algum tempo, durante o qual ela também não disse nada, apenas continuou sentada, manchado o cigarro com seu batom tão vermelho quanto as unhas. Depois, lentamente, como que incerto de seus próprios movimentos, ou talvez temendo que ela fosse somente uma ilusão, ele se aproximou. Parou à frente dela e por mais alguns momentos permaneceu em silêncio, inebriado pelo perfume que ela ainda usava e que ele conhecia bem. Talvez a única coisa sobre ela que nunca mudasse.
Foi ela a primeira a romper o silêncio, com sua voz baixa, macia.
- Este é o único lugar onde não sinto que tudo pode mudar em um segundo.
Havia algo em seu tom. Algo em seu olhar. Roderick sempre observara nela certa inquietação, mas desta vez era algo diferente. Desta vez ela parecia um pouco melancólica.
- Eu... estou com alguém agora. – ele murmurou pausadamente, prestando bastante atenção à reação dela.
- Oh...! – fez ela. E soltando a fumaça enquanto falava, continuou – Ela está lá dentro agora?
Roderick demorou-se um pouco. Tentava decidir se era melhor contar uma mentira ou dizer a verdade. Por fim, os olhos amendoados dela, tão profundos como o céu à noite, obrigaram-no a dizer a verdade:
- Não.
Ele poderia jurar tê-la visto sorrir por uma fração de segundo, antes de levar o cigarro à boca outra vez.
- Você quer entrar?
Ela não respondeu, mas apagou o cigarro sob a sola do sapato preto e levantou-se. Ao fazê-lo, por poucos centímetros o seu corpo não se encostou ao de Roderick, ainda parado no mesmo lugar. Ele afastou-se, saindo do caminho, e depois de pegar a mala que ela havia deixado para trás, seguiu-a para dentro da casa.
***
“Tudo me interessa
E nada me prende”
(Fernando Pessoa)
O cinzeiro de metal só ficava em cima da mesinha de centro na sala quando ela aparecia. Em poucos minutos ele já estava cheio de cinzas e cheio dos restos de cigarros marcado pelo batom vermelho dela. Roderick não fumava e não gostava de cigarros, mas não se importava que ela fumasse. Ele até gostava de vê-la fumar. Cada tragada, para ela, parecia um verdadeiro deleite, e por isso era prazeroso observá-la enquanto o fazia.
Raramente, também, havia mais de uma garrafa de vinho vazia. Mas ela gostava de beber. Talvez gostasse mais ainda disso do que de fumar. E Roderick, enquanto a ouvia contar suas histórias, bebia taças e mais taças sem se dar conta disto.
Ela não gostava da rotina diária. Não gostava de repetir histórias e nem lugares ou pessoas, mas quando estava ali, com Roderick, parecia gostar que nada mudasse. Quando ela aparecia, Roderick sabia que ela estava cansada da inconstância de suas viagens e por isso o cinzeiro que ele colocava em cima da mesinha de centro na sala era sempre o mesmo, e o vinho – ou vinhos - que ele abria era sempre o mesmo. Ela gostava, embora nunca dissesse.
Após os cigarros e as várias taças de vinho, ela se aproximava com a mesma brandura de um gato. Ia-se chegando devagar, quase como se tivesse preguiça de mexer-se, e aos poucos seus lábios manchavam de vermelho a pele do pescoço de Roderick e as roupas dele iam parando ao chão.
- Eu estou com alguém agora. – repetiu ele, após os cigarros e após as taças de vinho.
Ela não disse nada. Não mostrou sinal de desgosto. Mas seus olhos, grandes, profundos e hipnotizantes permaneciam fixos em Roderick. Ela terminou outro cigarro. Amontoou-o sem pressa em meio a outros no cinzeiro e então, como sempre fazia, com seus movimentos tão sutis, foi se aproximando de Roderick.
Ele pensou em rejeitá-la. Pensou no “alguém” com quem estava agora. Mas como rejeitá-la? Como evitar que seus lábios lhe beijassem com tanta ferocidade? Como evitar que as mãos dela arrancassem suas roupas? Ele era incapaz, sempre fora incapaz, de dizer-lhe não.
Aos poucos, foi-se entregando a ela. Aos desejos e vontades dela. Ali mesmo onde estavam, na sala. No sofá. No tapete. Em meio à bagunça da mesinha de centro. Ele entregou-se a ela até a última gota, como se aquela fosse a última vez em que fariam amor.
***
Apenas o perfume. E as garrafas vazias de vinho. E o cinzeiro cheio. Era apenas o que restava quando a manhã veio. Roderick acordou, mas era como se ainda estivesse mergulhado em um sonho. Antes de sentir o perfume, e antes de notar as marcas de batom que ela havia deixado para trás, ele duvidou mesmo de que a noite anterior tivesse sido verdadeira.
Ela tinha chegado. O hipnotizado. O encantando. E ido embora. Sem dizer adeus. Sem dizer se algum dia voltaria ali novamente.
A mala desgastada havia desaparecido junto com ela. Mas no lugar onde Roderick a havia colocado na noite anterior, havia agora um bilhete.
“Que nossas despedidas sejam um eterno reencontro”
O papel tinha o cheiro dela também, e em lugar de assinar seu nome, sua marca preferida: a de batom.