Ninguém está a salvo
“Viver é um mal. É um segredo de todos conhecido. Uma dor muito simples, nada misteriosa” (Charles Baudelaire)
Estou nervoso, pensava. Muito nervoso. Ele me observava através das lentes de seus óculos. Um homem magro, de meia idade, ereto em sua cadeira estofada. O consultório era pequeno, mas confortável. Iniciou a conversa com um sorriso e um aperto de mão (qual é seu nome, filho?), o que me tranqüilizou um pouco, mas ainda estava nervoso.
Sentia-me sempre assim quando estava frente a frente com outro ser humano (timidez? covardia? neurose? nem eu sabia. Talvez um pouco de tudo isso).
O doutor tinha a voz grave e firme, como a de um locutor num desses programas de rádio que se costuma ouvir de madrugada. Desses que ainda tocam jazz e blues, às vezes um The doors. Disse que o procurei por que um amigo havia indicado. Ele pareceu perceber meu nervosismo e puxou uma conversa descontraída, talvez para tentar me deixar mais à vontade. Sentia o suor escorrendo em minha testa, eu realmente odiava aquilo. Procurar um médico e descrever para ele tudo o que voce está sentindo é mais ou menos como confessar os seus pecados a um padre. Sei que parece exagero, mas era assim que eu encarava a coisa. Você acaba contando para ele um pouco da sua intimidade ( e sempre preferi escrever a falar). A única diferença entre o padre e o médico é que o médico serve para alguma coisa...
- Muito bem, qual é o seu problema, Sr. Wilker?
- Não sei direito, doutor. Ando muito estranho nesses últimos dias.
- Estranho como? Defina melhor.
- Bem, sinto às vezes uma pressão muito forte na cabeça, como se duas mão invisíveis tentassem esmagá-la e transformá-la numa bolinha de gude feita de carne, e quando isso acontece...
Enquanto eu falava, percebi que os pássaros, alheios aos meus problemas, cantavam lá fora. Num milésimo de segundo (ou algo assim) imaginei várias pessoas indo e vindo no centro da cidade, a rua cheia de rostos iluminados pelo fraco sol da tarde. Quais seriam seus problemas? E assim, apesar do enorme embaraço que sentia, contei ao doutor sobre os meus infernos. Sobre tudo o que quebrei em irracionais acessos de fúria. Os objetos atirados contra a parede ou o chão. Contei sobre as crises de choro, sobre a tristeza que às vezes me invadia e que era tão grande e eu nem ao menos sabia o porquê, mas sabia que doía. Disse a ele tudo o que me afligia. Os pensamentos que se infiltravam sorrateiramente em minha mente, me tentando com promessas de um vazio sem dor.
Ao final da conversa saí do consultório com uma caixinha de remédios na mão (que merda, estou oficialmente pirado!). Caminhei por ruas onde os carros vomitavam poluição e a pichação encobria os muros. Voltei a pensar nas pessoas e em seus possíveis problemas. O que elas ocultariam nos porões de suas mentes? Que pedaços de suas vidas lhes seriam mais dolorosos, quase insuportáveis? Talvez algumas delas se trancassem no banheiro do escritório para chorar. Outras, quem sabe, já tentaram alcançar seu próprio fim. Existem aqueles que são mais fortes, é claro. Nessas pessoas as feridas parecem cicatrizar mais rapidamente, mas elas também vislumbram o abismo, mesmo que por apenas alguns instantes. O fato é que todos nós somos como personagens em um romance Kafkiano, meras baratas atordoadas pela vida. São estranhas as metamorfoses, na maioria das vezes, psicológicas, a que somos submetidos. Ninguém está a salvo das garras da “loucura”, nem mesmo aquelas criaturas sorridentes e atordoadas que parecem não trilhar os mesmos caminhos tortuosos que você e eu percorremos. Ninguém está a salvo, nem os insensíveis, nem os vencedores por natureza. Por que a vitória também pode levar ao desespero, o tédio é tão fatal quanto a derrota. Os carros passavam, passavam e passavam e eu esperava no meio daqueles rostos tristes o momento exato em que a luz iria mudar para o vermelho e nós poderíamos chegar ao outro lado da rua. Então começou a chover...
(Wilker Duarte) 03/12/11 04h40min