Quinta feira da semana santa
Eram Vinte e duas horas e cinquenta minutos quando sai da aula. Hoje eu havia chegado à aula na hora certa, sem atrasos rotineiros. Quando falo sobre meus atrasos eu me sinto uma carioca, segundo uma das poesias de Vinicius de Moraes: “Ser carioca é não gostar de levantar cedo, mesmo tendo obrigatoriamente de fazê-lo” e ele continua afirmando na mesma poesia no parágrafo seguinte: “Que outra criatura no mundo acorda para a labuta diária como um carioca? Até que a mãe, a irmã, a empregada ou o amigo o tirem do seu plúmbeo letargo, três edifícios são erguidos em São Paulo”. Acredito que essa afirmação de lentidão matutina descrita por Vinicius, também poderia ser empregue aos brasilienses; Pois sou brasiliense e possuo as características do ritual matutino carioca, bem não somente eu, mas grande parte dos brasilienses que convivo diariamente.
Tive três aulas muito boas, Geografia, Matemática e Química. Aulas valiosas para conseguir enfrentar a fera do vestibular. Fera essa que vem se aproximando sorrateiramente faminta, pronta para dar o bote e derrubar suas vitimas; a fera aproveita bem a caçada se alimenta o quanto pode de suas presas desinformadas, pois só tem o prazer de se alimentar a cada seis meses, sobreviventes compartilham a experiência com a fera, é preciso muita técnica e conhecimento para vencê-la.
Apenas metade da turma de alunos compareceu hoje. Todos estão correndo, planejando, gastando e sorrindo. Hoje é véspera de feriado, a Quinta feira que antecede a Sexta feira da Paixão. E no domingo, Páscoa. Como se já não bastasse à ilusão enfadonha de um velho gordo da terceira idade que tira presentes inesgotáveis de um saco vermelho; Temos de suportar também coelhos que misteriosamente põem ovos de chocolate. Viva o capitalismo! Viva o consumismo!
Sai do prédio do curso, encontrei a rua com um clima agradável, eu vestia um vestido azul marinho de tecido leve e meia calça preta, eu vesti o outono. Atravessei a rua por entre os carros e andei ligeiramente olhando para todos os lados, não só por motivo de segurança, mas para ver se eu encontrava algum rosto conhecido, bem quero dizer rosto amigo. Pois rosto conhecido por ali eu encontrei vários, alguns moradores de rua que me pedem moedas todos os dias; Prostitutas com suas caras pintadas de olhar sem vida; Travestis com roupas minúsculas se equilibrando em saltos enormes; Catadores de lixo felizes ao encontrar latas de cerveja no chão; Traficantes e usuários em seu ritual noturno; E a criança que dorme faminta enrolada em um papelão sujo com uma lata de cola de sapateiro na mão. Mas quem liga para esses “conhecidos” amanhã é feriado.
Passei em frente de lojas, paradas de ônibus, ruas e becos, lugares que em outros tempos eu dominava, juntamente com meus amigos embriagados e depressivos, filosofando sobre tudo e discutindo sobre nada. Apenas palavras rebuscadas da nossa dialética em bocas encharcadas com álcool e halito de cigarros de filtro vermelho. O estado de embriaguez se tornava sempre necessário, reuníamos em um ato solidário do bem em comum o dinheiro que não possuímos tirando até as ultimas moedas que se escondiam no fundo das bolsas e cantos secretos das carteiras para uma significativa ‘intera’.
Ao me lembrar das bocas e ‘interas’ me deu vertigem e sede, o clima e muito seco nesta época do ano. Mas, será o clima seco ou a lembrança do álcool desidratando meu organismo que me deu sede? Fui para o mercado mais próximo comprar cerveja sem álcool, andei cinco quadras. Não poderia ser diferente.
Parada na frente do mercado eu observei bem o estacionamento. Estacionamento que já me serviu de abrigo, ponto de encontro e como não poderia faltar: Brigas, discussão e flerte. Afinal qual bêbado na madrugada pratica bons atos? Tenho plena certeza de que não se reúnem para rezar.
Ao entrar no mercado deparei-me com uma pequena multidão aglomerada em torno dos caixas, me juntei a eles, esperei por um momento, sai e retornei com uma caixa de cerveja sem álcool, mantive a pose de boa moça educada na fila do mercado.
Já no caixa o atendente me sorriu um sorriso cínico, como de quem fala “Coitada, está sozinha em plena véspera de feriado com uma caixa contendo seis garrafas long neck de cervejas Liber. Será que ela cria gatos?”
Sorri de volta ignorando o meu pensamento, paguei minha cerveja e sai do mercado; desci a rua ainda olhando para os lados, procurando algum rosto conhecido, digo, amigo. Mas nada, ninguém por ali.
Abri a garrafa de cerveja, a sede ainda me incomodava dei um gole e degustei o malte fermentado, açúcar e água, sem nenhum pingo de álcool. Ri de mim mesma, por saber que tudo isso fora escolhido por mim. E fiquei feliz em continuar em minha sóbria maturidade.
Passei em frente à velha pracinha que agora sem bancos, torna-se triste e pobre. Mais um local entre quadras para guardar carros e acumular restos de cigarro, fezes de animais e a terceira idade que não dispensa todos os dias uma bela partida de domino. A pracinha era o nosso reino encantado, tínhamos música, bebidas e cigarros. Mas agora depois de vê-la destruída e abandonada mostrou-se um reino sem nenhum encantamento.
Há! Que saudade tenho das tardes, noites e madrugadas que passei nessa praça. Fui feliz em quintal alheio, me sentia tão dona do local quanto os moradores que ali vivem. Quantos rostos, cenas e diálogos surgem em minha memória, fiquei mais feliz ainda ao perceber que o que foi vivido ali por mim e por meus iguais, não será realizado novamente. Os interesses e locais de divertimento da nova geração dessa pequena cidade satélite serão outros. E o que nos vivemos não mais se repetirá.
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