Uma dose de vodca
Meu vizinho lança-me um olhar reprovador, enquanto passo por ele com um cigarro nos lábios. Não sei o que o doutor Conrado tem contra mim, mas toda vez que me avista, sinto-lhe o desprezo. Talvez ele considere meu emprego no barzinho uma droga; em comparação ao seu, sou somente um cantor vadio.
Expiro a fumaça, presunçoso, e entro no meu apertado kitchenette. Está tudo como deixei, ou seja, na maior desordem. Porém nem me importo. Estou tão cansado da minha matinê naquela joça de bar que só anseio dormir. Antes, claro, farei meu ritual diário: beber uma dose de vodca – uma vodca de quinta, daquelas bem baratas.
Reviro o armário da cozinha, à procura da bebida – droga! Será que esqueci de comprá-la –, quando o telefone celular toca. Estranho. Ninguém tem meu número, salvo minha mãe, que me liga uma vez por mês.
– Alô? – digo, agora mexendo na prateleira. Ah! Finalmente! A garrafa estava escondida entre uma caixa de cereal e alguns miojos.
– E aí, Dio? – uma voz familiar profere meu antigo apelido.
Em alguns segundos, reconheço-a:
– Mas que porr...?! Andrei, é você?
Uma risadinha aguda atravessa meus ouvidos:
– Quem mais seria?
Ora, ora. Quem diria que Andrei, o batera de minha ex-banda, telefonaria depois de mais de cinco anos sem contato?
– Como conseguiu meu telefone? – pergunto.
– Sua mãe me passou. Ela também disse que você arrumou um trampo.
– É um trabalho legal – minto. Aquela porcaria só serve para pagar as contas.
Quando um meio silêncio se instala, algumas perguntas pulsam em minha mente: a banda ainda tocava, estavam todos bens? Mas deixo-as para lá. Passado é passado.
Andrei fica desconfortável. Certamente encontra-se no mesmo impasse que eu.
– Bem, boa sorte com seu emprego – ele diz – Você ainda bebe muito?
– Não – falo, tirando a tampa da garrafa e bebendo o líquido pelo gargalo. O ardor queima minha garganta. – Parei há tempos.
Andrei me apóia com algumas palavras animadoras, aquele blábláblá de como o álcool prejudica sua vida. Em seguida, subitamente embaraçado, suspira:
– Ah... Dio. Eu queria ter te ligado somente para saber como está, mas o motivo é outro. Acho que já desconfia.
Certo. Eu já sabia, desde o início, de quem ele queria falar. Contudo, isso não significava que desejava tocar nesse assunto.
– Não mudarei minha opinião, Andrei.
O desespero toma conta de sua voz:
– Dio, foi há tanto tempo! Você tem que perdoá-lo, não sabe o quanto ele se arrependeu.
Não gostava de lembrar o passado. Eu negava recordar o motivo de ter ido embora de minha cidade natal, cinco anos atrás. Não, não, não... Depois de todas as barreiras que criei, não as destruiria em poucos minutos. Irritado, digo isso a Andrei.
– Alex está morrendo. – ele fala.
Sou pego de surpresa:
– O quê?
– Ele pediu para te ligar – Andrei continua. – Alex está com câncer na garganta, nem pode conversar direito. Você sabe, ele fumava desde a adolescência.
Sim, Alex era uma máquina de fumaça. Nunca o vi sem um cigarro. Dirijo-me para a sala, sentando-me no sofá, e penso no que Andrei me informou. Com calma, replico:
– Eu realmente sinto muito por ele.
– Alex quer te ver. Obter seu perdão. Só resta-lhe umas semanas.
Então era aí que Andrei queria chegar. Queria que, de uma hora para outra, eu esquecesse o que Alex me fez.
– Não. – sou impassível.
– Mas vocês são amigos! Ele te ajudou, te ensinou tudo que sabia sobre música! Olhe por esse lado...
Uma verdade. Antes de conhecer Alex, eu era só um adolescente que pensava saber tudo sobre rock. Foi com ele, no entanto, que apreendi o real mundo da música: o mundo onde o som era a única e importante regra. Fiquei tão bom que, em dado momento, o superei. Formei minha própria banda, e embora Alex tenha continuado a ser meu melhor amigo, senti que se afastou um pouco. E exatamente nesse ponto recebi uma punhalada nas costas.
– Éramos amigos. – corrijo.
Andrei reclama:
– Qual é, Dionísio? Toda essa briga por uma mulher?
Não era uma mulher qualquer. Era a que eu amava. Quando encontrei Elise me apaixonei instantaneamente, e não demorou para começarmos a namorar. Ser um vocalista tinha lá suas vantagens. Tudo parecia perfeito, até Alex entrar no meio.
Meses antes de eu descobrir que ele dormia com minha namorada, nos afastamos mais. Acho que Alex tinha inveja do sucesso adquirido pela minha banda, enquanto ele, que cantava solo, foi esquecido. Entretanto, nunca imaginei que os dois fariam aquilo comigo. As aparências enganam.
Lembro-me do dia em que os peguei juntos. Cheguei mais cedo de uma turnê e fui visitar Elise em sua casa. Fiquei em choque ao vê-los se beijando, quase sem roupas. Porém, não fiz nada, nem sequer ouvi suas tentativas de explicação. Arrumei minhas coisas e me mandei, abandonando a banda, a faculdade, meus sonhos... Simplesmente não suportava a ideia de ficar naquele lugar.
– Você não me convencerá a perdoá-lo! – exclamo. – Se ele pelo menos a amasse, mas Alex fez aquilo somente porque sentia uma inveja doentia. Não queria que ninguém o ultrapassasse.
Andrei, hesitante, concorda comigo:
– É, ele errou. Mas o cara está morrendo! Guardará mágoas mesmo depois da morte dele?
– Vou pensar... Talvez consiga desculpá-lo. – falo.
– Promete que...
Sem remorsos, desligo o celular. O papo me encheu. Fito a bebida, ainda em minhas mãos, e levanto a garrafa.
– Essa é para você, Alex. – murmuro, levando a vodca à boca. – Que sua alma queime no inferno!