A Estante de Angélica - Parte II
Os panos negros e encardidos acumulavam-se dentro do balde verde-escuro puído, destoantemente incrustado no espaço lustroso do chão de mármore, entre a sala de massagem e o toalete do Jaquelline Jolie Cabeleireiros.
As cores do local pareciam se alterar sob o olhar de Angélica. Ao que parece, se aos empregadores do local fossem atribuídos determinados poderes, eles certamente não pensariam duas vezes antes de abolir por completo as necessidades fisiológicas de seus semi-escravos, a fim de que não contaminassem sequer com a respiração, aquilo que era reservado aos seus clientes imortais do Olimpo. O estabelecimento era ponto favorito das socialites, empresárias, artistas e apresentadores de TV, além de operar perto de Jardin Parfait, ponto luxuoso da cidade.
Talvez pela sensação de desconfortável "embriaguez" causada por seus lacrimosos e quiçá cármicos infortúnios, Angélica percebera "tardiamente" (ainda que fosse num átimo de segundo, pois nada era "perfeito o suficiente" no ponto de vista de entidades opressoras), que não executara um dos treinamentos básicos de infância, um do qual não era necessário finesse alguma, e que portanto ela bem aprendera aos 3 ou 4 anos anos de idade: apagar a luz e fechar a porta. Utilizara o toalete dos Deuses do Olimpo, (em tempos longínquos como bem se sabe, ele lhe teria sido reservado) , sorrateira e perigosamente, e fora tarde demais quando uma das esteriotipadas "socialites" percebera o "crime".
A dita cuja, possuía o semblante impecável e o corpo escultural das atrizes de novela, além de uma bela pele, ainda que artificialmente bronzeada. Os cabelos castanhos esvoaçantes, evidentemente recém-tratados com os mais caros produtos das "fashion magazines", reluziam sob a claridade dos spots, estrategicamente colocados no corredor. Olhando Angélica de cima a baixo com um asco que talvez somente os próprios vermes se pudessem seriam capazes de verbalizar quando assim olhados, e evidentemente chocada com o "disparate" , ela rapidamente não teve dúvidas ao fazer o serviço que em seu ver, a plebe não era capaz. Tendo apagado a luz e fechado a porta do toalete, parou alguns segundos diante de Angélica, arqueando uma de suas bem desenhadas sobrancelhas a fim de constrangê-la o suficiente pelo leve episódio, antes de virar-se e caminhar com seus saltos agulha ecoando pelo corredor, de volta ao hall principal do salão de beleza.
"É isso então?" , pensou. Desagradavelmente apoiada no cabo do esfregão, aguentando as dores nas pernas e o inchaço nos pés, num corpo que certamente não tinha estrutura para suportar serviços de natureza física, pensativa, admitia a si mesma que um momento de desatino no passado, talvez fosse o grande responsável por tudo aquilo. Talvez sim, talvez não. Admitia que largara a poderosa Universidad de San Salvador em um momento de ira, angústia enquanto a vida familiar desmoronava. A doença degenerativa cerebral da mãe, depois a depressão do pai, em seguida o choque dos irmãos diante dos acontecimentos, a traição de um breve affair. Depressão, stress, raiva. Humilhação sofrida em público por causa da arrogância de alguns professores. Era tão inocente para descobrir que o Ego Pútrido dos seres humanos habitava em qualquer lugar. Agora entendia. Tudo parecia tão óbvio e perguntava-se sobre seus antigos gastos com terapia para entender porque estava sempre na "mira" do ego alheio. Excesso de bondade e ingenuidade, talvez?
O fator "cultura" que sobrara de sua semi-formação não agradava ao mercado de trabalho. Alguém que tinha finesse, bagagem e berço mas não demonstrava iniciativa ou esperteza, ficava num estranho limbo. Auxiliar de limpeza? Ok, foi o que apareceu. Apesar de tudo, conseguiu milagrosamente auxílio financeiro de Aurélio, que após a maioridade e uma profunda revolta contra o reinado de Monique Levy, compactuou com seus colegas da área do direito para expulsá-la da "Mansão Chevalier". Ao que parece, a estratégia de Aurélio, num surpreendente golpe de mestre para alguém tão jovem, havia sido tão bem sucedida que Monique partiu em uma noite sem cerimônias. Mas o retorno à mansão, para Angélica, continuava utópico. Se por um lado Monique havia saído de cena, de outro Aurélio se deixava seduzir por outras femmes fatales, seguindo os passos do pai. Rompera com a namorada, e as pretendentes que surgiram em seguida se deixavam impressionar pelas colunas de mármore da mansão. E certamente eram "fatales" o suficiente para não querer cunhada alguma por perto.
O auxílio, no entanto, servira para o retorno aos estudos. Não era mais possível caminhar para a glória do passado, e como Angélica bem sabia, teria de se jogar do lugar onde um dia fora designada como elite intelectual e engolir o que quer que fosse oferecido à sua mente afiada numa empresa educacional qualquer. Escolheu Editoração, simplesmente porque era uma forma de participar de formação de seu objeto cultural favorito: O livro.
Então lembrava-se...
A Uniforça exigira uma única redação livre de 10 a 15 linhas. Terminado em 10 minutos o serviço meia-boca que decidiria seu futuro, parou pra sentar num dos bancos do local e saborear uma barra de Suflair, enquanto retirava da bolsa um guia do estudante, que comprara na semana anterior. Logo em seguida viu sair da sala de redação, uma moça com cabelo liso, naturalmente ruiva e de olhos esverdeados. Nariz adunco, pele branca, andar caricato, mediado por botas de cano alto, aos quais, sua dona, acreditava que deveriam se destacar.
-"Achei essa redação ridícula. Você também prestou para editoração?"
Ambas estavam de saída, mas acabaram por conversar durante quatro longas horas. Dados os trejeitos arrogantes de Silvana, a nova colega, Angélica segurou-se para não rir, embora quisesse se retirar do local o mais rápido possível. De fato já sabia que teria que aguentar gente igual ou pior a ela em sala de aula. Silvana acreditava ser o centro das atenções quando na verdade não era, vomitava palavras ao vento acreditando possuir algum nível de intelectualidade que definitivamente não lhe pertencia. Era evidente que tentava impressionar e muito provavelmente em seu dia-a-dia ela deveria ser do tipo que acreditava estar acima dos outros.
Contou que escrevera um livro de não-ficção sobre direito trabalhista, que promovera uma tarde de autógrafos, que já trabalhara em editoras, que fazia um curso de japonês avançado. Angélica não se impressionou. Teve aliás, pena. Sabia que para alguém com tanta pretensão e teatralidade, embora risível, como Silvana, conseguir arrancar uma casquinha dos chefes editores não era nada difícil. E se provavelmente pedisse à nova colega que pronunciasse algumas palavras em japonês, ela, devido à sua postura, certamente se portaria de forma tão tragicômica que seria melhor não se utilizar dessa arma. Angélica guardou-a por compaixão.
Quatro horas eram o suficiente para uma leitura concisa. Mas Angélica falara demais sobre si, tão demais, quanto Silvana lhe cobrava respostas para tudo. Angélica não sabia dizer não. Com tudo que Silvana lhe parecera, era quase que por piedade que prolongava a conversa.
Somente ao final, a despedida revelou finalmente a capacidade oculta de Angélica para a franqueza; mais do que necessária, aliás. Sabia que cometera o erro de se empolgar com alguém a mais para conversar, já que possuía amizades tão restritas na vida, embora essas lhe bastassem, afinal aprendera muito sobre o comportamento alheio. Sabia que tinha o estúpido ímpeto de parecer minimamente agradável aos outros, fossem quem fossem. Era de sua natureza ser amigável.
Mas foi esse ímpeto que a fez perigosamente convidar Silvana para tomar um café na padaria na semana seguinte, visitar uma exposição no centro da cidade e assistir a uma peça teatral. A voz da razão porém a beliscou: "Mas que diabos estou fazendo? Ela parece tão evidentemente arrogante, o ego inflado está tatuado na testa dela, essas 4 horas foram mais irritantes do que edificantes, ela tem fala e trejeitos forçados que chegam à beira do ridículo, mas Deus, por quê tenho essa mania de querer parecer agradável? Por quê? Está tudo tão na cara, ela parece exigir algo dos outros, é tudo tão claro. Se ela me convidar para alguma coisa e eu recusar, ela irá espernear. Não é do tipo que dá liberdade pros outros... Desfaça-se dela, Angélica."
Teve paciência para um pouco mais de papo arrastado enquanto elaborava uma forma de desvencilhar-se de Silvana.
-"Bom, Silvana esqueci de uma coisa, eu... esqueci que vou provavelmente começar algumas aulas de espanhol nos fins de semana... acabei de lembrar. Vai ficar difícil da gente sair, sinto muito."
-"O QUÊ?" Como assim? Mas você é chata hein? Como que você me convida pra fazer três coisas agora e cancela desse jeito??? Que que acontece????
-"Calma, eu simplesmente falei que acabei de me lembrar que não vai dar. Também não precisa ficar exigindo que alguém saia com você, acho que não é bem assim que as coisas são..."
-"Olha, você me diz que faz terapia né, pois sua terapia não deve estar é funcionando garota, porque você não tem um pingo de educação, te falta é SE MANCOL, eu tou me mandando, sua idiota, debilóide! Passar bem!"
- "Certo, desculpe, olha não foi minha intenção te ofender, você é bacana e tudo mais, se eu te ofendi, mil desculpas, achei só que você não deveria fazer exigências assim..."
- Tá bom, ok, vai, desculpe. Olha eu de qualquer forma preciso ir agora, acho que você deve ter coisa pra fazer, vai lá... Te ligo mais tarde...
Tendo conseguido evitar maiores discussões, Angélica, calculou o tempo. Correu. A loja da operadora de telefonia celular ainda estava aberta no Shopping mais próximo. Trocou o número do celular. Chegando em casa, pôs-se a ler o guia do estudante. Escolheu uma nova universidade. Unifeliciano. "Tem editoração. Tem qualquer outra coisa, aliás... Entro em contato amanhã."
E tendo largado o guia e o corpo na cama, tornou a admirar sua estante. Enquanto a fitava , emoldurava-a com os dedos, desenhando um coração no ar. Logo acima, estava um caderno com alguns de seus escritos. Escrevera com o coração. Sorriu, e logo em seguida sentindo a tranquilidade proporcionada pelos primeiros pingos de chuva que batiam à janela, pôs-se a dormir.