Sempre culpe o álcool.

Sempre culpe o álcool.

Conheceram-se na sorveteria. Ele pediu um sorvete de pistache com chocolate e ela, pistache com chocolate de passas ao rum. Em um tropeço de um funcionário lerdo, as mesas receberam pedido errado;e seus corações, o pedido certo.

Quando acabaram com o sorvete de pistache, suas vozes se cruzaram ao chamar a atenção do funcionário desleixado. Ela levantou com seus cabelos em movimento e tocou no ombro de Humberto: perguntou se ele poderia lhe dar o que era seu.Sorriu.

No momento, ele quis lhe dar o que sempre achou que estava morto — sempre acreditou numa apatia interna. Ele lhe passou o sorvete no mesmo tempo que lhe passou seu coração. Sua conversa foi leve, cheio de gargalhadas, sobre a vida, sobre tudo. Não sabia se estava ébrio por sua voz, por sua beleza ou pelo sorvete banhado no rum, que já não era dela ou dele: era de ambos.

Passou-se ano e meio, coisa de primavera e outono, apenas o tempo para arrumar os festejos e para a notícia correr pela cidade. Todos estavam satisfeitos, as famílias se tornaram amigas, os amigos viam a felicidade do casal unido pelo suave pistache. Tudo era alegre, apenas não superado pela alegria dos nubentes.

Foram instalados em um sobrado dentro de um condomínio fechado com um chão lindo de madeira — chão este confidente do amor furioso e explosivo do jovem casal. Ela pintou as paredes do quarto de azul, ele arrumou as prateleiras do escritório.

Tomavam a vida a dois como uma grande novidade prazerosa. Muitas caixas não foram abertas. Ele trabalhava em uma repartição pública e ela era médica em um hospital de geriatria.

O café da manhã era o momento mais gostoso dos dois nos finais de semana. Ele acordava primeiro, fazia o chá, ia para a varanda interna e lia algum livro.Alguns minutos depois, ela sentia ausência de seu calor na cama. Levantava-se guiada pelo instinto, entre o sono e o dia, beijava-o com amor, seu toque de despertar.

Fazia algo para comerem. Regava o único vaso de plantas que tinham. Apreciava a figura de Humberto lendo e se sentia com sorte, por amar, ser amada e por respirar com a segurança de seu coração ser repleto por um sentimento que, sabia,os levaria até o final dos tempos.

No hospital geriátrico, sempre nas consultas — após examinar seus pacientes —, ouvia com cuidado suas experiências, as vidas, as tristezas de estarem em uma solidão plena, o convívio com seus familiares, o choro do fim da vida estar perto e a grandiosidade de uma existência posterior à própria vida.

As histórias favoritas sempre eram de como seus pacientes conheceram seu grande amor. Tantas lutas, conflitos, abnegações, e a presença de um sentimento raro, não muito conservado. Alguns tiveram amores de semanas; outros conseguiram conservar o amor para a vida. Quando quase estava para chorar nestas histórias, pela própria emoção de um paciente com o dom eloquente de sensibilizá-la, levantava e pegava um potinho de balas recheadas de caramelo.

Muitos pacientes, mesmo diabéticos, pegavam com os olhos de meninice. Ela dizia: o que é a vida, senão um risco por uma grande emoção, não? E caíam médica e paciente na risada.

Quando se passou um mês de casados, decidiram arrumar o quarto do casal. Tarefa difícil, por não saberem onde cada um colocaria seus pertences. Colocaram os quadros, o espelho. Alguns livros nas prateleiras que Humberto já tinha montado. O guarda-roupa foi fácil:ele possuía uma simplicidade em vestimentas — e ela não exagerava em seus sapatos.

A única exigência era que ele lhe desse uma gaveta só para ela. Ele achou comum e deu. Uma gaveta pedida não seria problema algum.

Cansado, dormiu antes de sua eterna amada. Quando acordou, ela já estava em pé, como de costume em uma manhã no meio da semana. Deu um beijo enorme nele, falou que estavam atrasados e que tinha arrumado a roupa de Humberto. Quando estava na soleira da porta, lhe disse: “Amor, prometa nunca, nunca abrir a gaveta que lhe pedi. Volto mais tarde por que terei que ver hoje o leito dos pacientes internados antes de sair. Te amo”.

Humberto rolou na cama e ouviu a porta bater com muita pressa. Acorda quebrado, ela não preparou o café da manhã dessa vez. Resolveu tomar o café na padaria. No banho, percebeu que a conversa que ele teve de manhã não lhe deixou com um bom sabor, diferente de todas as conversas doces que teve com a mulher de sua vida. Era amarga. Ela barrou Humberto.

Humberto não tinha acesso à gaveta. Como ela tinha uma gaveta inteira que ele não podia abrir?

Terminou o banho, foi ao serviço, comer não era mais preciso. Andou de carro por um bom tempo e sentiu-se com uma ideia fixa: entendeu o que era explicado por Machado de Assis em Memórias Póstumas de Brás Cubas. Ela gruda mais do que uma sanguessuga.Tira o sangue, enfraquece.

A gaveta enfraqueceu seus pensamentos. O que poderia ter ela na gaveta, inteira que me separa dela, pensa Humberto.

Foi parar automaticamente na sorveteria de seu primeiro contato com sua mulher, com cabelos em movimento, com rum no chocolate. Não sabia se ela era sua mulher. Não sabia se o pronome possessivo era utilizado corretamente. Era a mulher que talvez não pudesse ser sua. Era uma mulher.

Aproximou-se uma garçonete: ele não encontrou o incompetente que o juntou com aquela outra mulher. A mulher da gaveta a que ele não tinha acesso. A mulher a que ele não tinha acesso.

Ela o embebedou com rum no chocolate. Foi isso que Humberto fixamente olhava no cardápio. Traiçoeira. Perigosa. Enquadrou em uma aliança, em uma prisão e o amor de Humberto não estava sendo suficiente para saber tudo dela. Pediu para a garçonete água com gás.

Seu estômago revirava.

Viu na garçonete um sorriso. Percebeu no sorriso uma pinta no canto esquerdo acima de seus lábios. Ela pergunta se não pedirá uma casquinha. Maliciosamente, repete que quer uma casquinha de seu belo sorriso — cantada muito infeliz, nunca foi homem de linhas prontas para conquistar mulheres, mas sentiu-se mais forte.

Com o sorriso da garçonete, percebe que falta-lhe um canino. Avança como um guerreiro em um campo desconhecido. Pergunta quando sairá do trabalho. Ela diz que tem folga de alguns minutos e sua colega poderia cobrir seu turno. A garçonete sem canino pega no colarinho de sua camisa, acaricia-o e diz para esperar alguns minutos.

Estava vingado! Agora, a gaveta estava superada. Tinha um segredo, também. Não estava em desvantagem. Podia respirar tranquilo, sentiu-se com fome, disposto. Dane-se a gaveta. Danem-se todas as gavetas do mundo. Que seja dela a gaveta, bradavam as sinapses de seus neurônios.

Levou a garçonete para sua casa, no quarto azul, vendo a gaveta maldita. Despiu a garçonete,rasgando-lheas roupas, enquanto visualizava a gaveta. Ria, gargalhava em frente à gaveta. E foi em uma dessas gargalhadas que não ouviu a porta de entrada: sua esposa voltou por não se sentir bem no trabalho. Como é que isso sempre acontece?

Ela foi ao quarto, sabia por instinto o que acontecia. Abriu a porta já chorando. Chamou o nome dele com mágoa. Ele para, bem meninote, na traquinagem realizada—e sorri. Não existia ninguém mais no quarto. Naquele momento, a garçonete poderia bem ser uma samambaia: não haveria diferença.

A única coisa que ela fez foi falar com clareza que ele não mais a procurasse. Ele não iria mais encontrá-la. Que ficasse com tudo. Que apenas os advogados seriam seus contatos. Muita frieza, uma frieza e controle que sabia que precisava ter.

Aproximou do ser masculino, estranho a seus sentimentos, e disse que o envelope que estava lhe entregando era para abrir apenas quando a samambaia humana saísse da casa — se algum dia ela fosse fazê-lo.

Ele parou, respirou e deu um dinheiro para o táxi da garçonete prostrada pela situação. Olhou satisfeito para a gaveta. Foi na cozinha e pegou uma caixa de comida chinesa amanhecida. Cheirou e deu uma garfada com gosto. Após terminar seu desjejum tardio,olhou com desprezo aquele envelope.

Riu bastante — deve ser a conta do cartão de crédito, bradou como um orangotango, vencedor de uma batalha no mundo animal. Abriu um exame. Um pedacinho de números que começaram a dar voltas porsua cabeça. Positivo. Ela estava grávida.

Dele? De quem? De outro homem. Ideias não paravam. Mais uma vez, culpou o sorvete alcoólico. A resposta deve estar na gaveta. Tem que estar naquela gaveta demoníaca. Tem que estar.

Desceu pelado até a garagem. Causou espanto aos vizinhos do condomínio. Pegou um pé–de-cabra. Chegou em frente à gaveta. Com ódio, fez força com o pé-de-cabra. A gaveta saltou:não estava aberta. Pulou e espalhou o conteúdo.

Eram muitas e muitas peças de calcinhas e sutiãs, rasgados, furados, desbotados. Sem beleza, sem vida, sem sentido. Exatamente como Humberto se sentia agora.