Memorias de uma anciã
Meu nome é Erme linda, mas pode me chamar somente de Lica. Nada de dona, pois as únicas coisas da qual sou proprietária, sãos as lembranças e os dissabores. Nasci no interior de São Paulo em uma fazenda, em mil novecentos e dezessete. Sou a única filha mulher de uma prole de nove filhos. Aos oito anos de idade eu já cuidava da casa e levava almoço para meus pais e meus irmãos na roça. Aos treze anos de idade me casei com um homem trinta anos mais velho. Foi um arranjo dos meus pais. Aos quatorze tive um filho que nasceu morto. Enviuvei aos dezesseis anos. Meu marido foi morto por causa de terras. Ele havia cercado áreas que não lhe pertenciam. Quando completei dezoito anos meus pais me arrumaram novo casamento. Desta vez meu companheiro tinha apenas dez anos a mais que eu. Era filho de gente de posse. Um moço de poucas palavras e muito rude. Logo depois da lua de mel, ele se mostrou exigente e violento. Por qualquer motivo me espancava. Certa vez depois de apanhar por quase uma noite inteira, criei coragem contei aos meus pais, e falei que queria me separar. Meu pai esbofeteou meu rosto e mandou que eu nunca mais dissesse aquilo de novo. Minha mãe ficou do lado dele, falou que a mulher tem que obedecer e fazer tudo para não deixar o marido nervoso. Que eu deveria levantar as mãos para o céu e agradecer pela vida boa que eu tinha. Meu pai completou dizendo que se eu apanhei, com certeza foi merecido. Que um homem não bate em sua mulher atoa. Ordenou que eu voltasse para casa, e fosse boazinha e obediente. Aos vinte e seis anos eu já era mãe de cinco filhos. Três meninos e duas meninas. Meus filhos tinha verdadeiro pavor do pai e eram tão espancados, quanto eu. Éramos uma família estranha. Não tínhamos amigos, saiamos raramente, só para irmos á igreja. Meu marido com grandes passadas ia altivamente à frente, atrás eu e as crianças. Esforçávamos para acompanha-lo. Cabisbaixos e exaustos. Não tínhamos permissão para falar com ninguém e assim que acabava a missa, voltávamos para casa sem parar em nenhum outro lugar. Meus pais e meus irmãos raramente apareciam, e quando o faziam me tratavam como se eu fosse uma desconhecida. Passavam todo o tempo admirando os porcos e o gado do meu marido. Falando do tempo e do preço do café. Não me convidavam para ir visita-los, e nem se importavam com os meus filhos. Estavam satisfeitos com o arranjo financeiro entre as famílias. Nunca fizeram perguntas sobre meu casamento, e nem se eu ainda era espancada. (Continua)