A Santíssima Igreja dos Negadores da Mediocridade
Por volta das 20 horas, a chuva começou a apertar. Bem no instante em que eu entornava o último gole pra ir embora. Em volta do bar lotado eram soltas exclamações denunciando São Pedro por alta conspiração, visto que o Santo insistia no costume de inundar o centro da cidade na hora exata do distinto cidadão carioca finalmente deixar o trabalho, rumo às mazelas, cada um do seu lar. Cabelos molhados chacoalhavam de um lado para outro, enquanto mangas de camisa eram espremidas. Tudo entre inúmeros comentários inócuos sobre os transtornos que a água vinda do céu pode causar. Aquilo me fez lembrar de “Águas de Março” e assim eu esperava terminar meu chope. Ao som imaginário de Tom Jobim.
Era um bar de galetos, daqueles com bancos altos e um balcão no centro. Lá dentro, ia e vinha o Athaíde, garçom gente fina, que nunca me explicou por que todas as “galeterias” tem este mesmo formato. Tentando voltar ao assunto naquela ocasião, presumi que o estabelecimento era organizado daquela forma para facilitar o atendimento e perguntei a ele se concordava. Ao invés de responder à pergunta, ou trazer a conta que eu já havia pedido algumas vezes, ele veio rápido com mais uma saideira na bandeja. Bem sabe Athaíde que eu jamais protestaria na presença de um chope tão bem tirado, dourado como se fora um produto de alquimia, na tulipa cristalina em cuja boca se depositava a espuma nevada, em altura milimetricamente perfeita.
É inegável que estes tipos de bar estimulam a interação entre os clientes. Uma vez sentado no balcão, dificilmente o camarada deixará a gorjeta sem antes ter engrenado uma ou duas conversas. Com alguma sorte, conhecerá alguém interessante. E com um autêntico milagre, pode escapar de falar sobre política e futebol.
Não era este o caso. Àquela altura, estávamos a menos de duas horas de uma partida da seleção, válida pelo torneio eliminatório da copa do mundo. Desta feita, o assunto dominante, senão exclusivo, a circular pelo salão não poderia ser outro: o consagrado esporte bretão.
Como naquela noite eu não estava para comentaristas, tentei permanecer o maior tempo possível alheio àquele congresso de Lazaronis, cada qual escalando o seu esquadrão imbatível pra nos trazer de novo o “caneco” e estampar na boca do brasileiro, aquele sorriso exuberante, desfalcado de alguns dentes, é verdade, mas complementado pelo mais profundo e relevante orgulho, que assim como a TV Mitsubishi, tem garantia até a copa seguinte.
Os frequentadores logo exigiram que o Athaíde ligasse o aparelho de televisão. Não se sabia a que horas aquela água toda ia estiar, portanto o melhor era ir testando a qualidade da imagem, pois em último caso, assistiriam à contenda dali mesmo.
Meus planos eram outros. Mas confesso que, enquanto o assunto rolava, eu precisava, em certos momentos, fazer algum esforço para manter oculto meu fanatismo rubro-negro, forjando uma expressão assim desinteressada, como se meu esporte favorito fosse o críquete, ou quem sabe, cuspe à distância. Não adiantou, porque lá pela metade da tulipa, fui convidado a participar do assunto pelo colega ao lado, que resolveu perguntar se eu partilhava da opinião de que “tudo o que temos que evitar para levar essa copa é evitar a presença de um novo Zinho” e completou: - Porque Zinho não dá. Não é, “Sangue bom”? – chamando a minha atenção com um gentil toque de braço, que alguém desavisado talvez tirasse por cotovelada.
Concordei, de pronto. Definitivamente, Zinho não dava. O cara tinha encerado no meio de campo do selecionado canarinho havia duas copas e o sujeito ali querendo que ele fosse o tema da conversa. Resignado, aderi ao debate, mas de maneira original, em voz alta, ainda que receoso de estar começando uma daquelas brigas de bar, o que, nos dias atuais, tornou-se algo muito perigoso:
- Pois bem, “Sangue”, eu digo que concordo. Não gosto do Zinho e não gosto de “zinho”. Já não me contento em viver num mundinho, morar num “apartamentozinho”, assistir ao futebolzinho no fim de semana, nem jogar um poquerzinho, e nada de ficar em casa vendo o casalzinho da novela das nove. O Zinho foi medíocre em 94, e por coincidência, o nome dele se resume a esse diminutivo, que associo imediatamente ao que significa a palavra “medíocre”. Só sei, companheiro, que ao menos em meus anseios, eu não tolero mais isso. Ando cansado da mediocridade e mesmo não sendo mais nenhum adolescente, gostaria de ser único, fazer algo marcante, que me trouxesse o gosto de viver plenamente.
O homem franziu a testa em sinal de estranhamento. Talvez, tenha dito mais alto do que eu queria. Fez-se um silêncio no bar, digno da final de 50. Alguns segundos depois, as conversas foram sendo retomadas. Enquanto isso, meus olhos foram percorrendo o rosto de cada uma das pessoas que estavam mais próximas, esperando a primeira manifestação de reprovação, para que eu pudesse, em réplica, desenvolver algum argumento.
Nada. Apenas olhares assustados. Virei o último gole do chope e vi que desta vez, Athaíde somava, com pressa, as folhas do talão da minha despesa.
Até que, à minha direita, um homem de terno cinza, ergueu uma bíblia sagrada com a mão direita e, com a cara fechada, disse em tom solene: - Esse homem precisa de Deus! – e bem baixinho, completou: - Quanta arrogância, Senhor.
Imaginei que fosse ter início uma pregação, mas ela não veio. Estiquei o pescoço, procurando, meio sem querer, algum vasilhame de refrigerante ou suco na direção do religioso, mas em toda a extensão do balcão, só avistei tulipas de chope e cerveja, copos de vinho doce e taças de conhaque.
Dei por encerrados os meus devaneios e já tinha a mão no bolso a separar as notas, quando deparei com um senhor de uns 65 anos, coberto por um paletó marrom escuro, que caminhava, vagarosamente, do outro lado do balcão, em direção à porta de saída. Ele apoiava no chão, a cada passo, a ponta do guarda-chuva comprido, que fazia vezes de uma bengala. Notei que ele me fitava, com um sorriso brando quase que totalmente escondido pelos bigodes grisalhos. Antes de alcançar a porta, o velho embainhou o guarda-chuva para o alto e disse:
-É isso aí meu rapaz. Todos deveriam anotar o que você falou aqui. É isso aí...
Surpreso com a inesperada moção de apoio, devolvi o sorriso discreto, enquanto o homem ia porta afora, andando com o pés quase juntos com a ajuda daquela bengala improvisada.
Instintivamente, eu tirei a mão vazia do bolso e levantei o dedo indicador, gesto que, visualizado por Athaíde, resultou em outro chope gelado, com dois centímetros de colarinho, bem na minha frente. Tomei uma golada generosa e bati forte a mão na mesa, despertando novamente a atenção de boa parte dos presentes, enquanto outros permaneciam distraídos em seus bate-papos, ou absortos na imagem da televisão:
-Desculpem, por favor, a minha empolgação de instantes atrás. – e prossegui - Foi inevitável. Não quero que pensem que sou algum esnobe. Sequer possuo méritos que me autorizem, e se tivesse, ainda assim não seria da minha natureza. Mas será que vocês não se pegam, vez por outra, pensando no que gostariam de fazer realmente com suas vidas. Alguém aqui, não deseja ou desejou, em algum momento, criar algo genial?
Foram cinco “que papo é esse?”, até que ouvi a primeira resposta interessada à minha indagação, de um homem de gorro, seus cinquenta anos, encostado na minha diagonal:
- Todos sonhamos em ser alguém, amigo. Ou em mudar o mundo. Muitos fomos marxistas sem ler uma linha de “O Capital”. Mas, sobretudo quando éramos jovens, tolos e ingênuos.
- Mas por que pensar assim? Por acaso, não vemos tantas coisas geniais e tantos personagens que admiramos por aí? – retruquei eu?
O assunto ganhou mais interessados e alguns, que estavam sentados mais adiante, levantaram-se para participar. Uma professora de literatura, que havia entrado apenas para se proteger da chuva, acabou ficando e começou a prestar atenção. Aos poucos, um por vez foi se metendo na conversa, e os que não usavam a palavra observavam aguardando a chance de interferir.
- Não creio que haja uma idade limite para fazer algo fantástico, mas confesso que já não alimento mais ilusões. – desabafou um deles, que se apresentou como advogado, cuja idade não combinava com a desesperança do que acabara de dizer.
- Pois não precisamos criar nada! – voltei eu. – Proponho aqui que nós sejamos aquilo que quisermos ser. E proponho um brinde, também. Ou melhor, um juramento. Se o amigo da bíblia puder nos emprestar, o livro sagrado será nosso instrumento.
O religioso resmungou que aquilo era heresia. Mas trouxe a bíblia e deixou sobre o balcão, bem à minha frente. Enquanto isso, Athaíde vendia cada vez mais bebida e aquele clima ia contagiando todo o balcão. Ninguém mais olhava para a televisão. De repente, todos brincavam de escolher alguém para ser naquele exato momento.
O primeiro a se decidir foi o gaiato que me perguntou do Zinho. Queria ser o Zico, no que foi rapidamente apelidado de “Amarelão” por alguns vascaínos que faziam referência ao pênalti perdido em 1986.
- Pois eu sou Chico Buarque! - levantou o braço o tal advogado. – aquele sim é genial.
Resolvi provocar:
- Sei que o Chico é brilhante, mas queria sugerir algo mais sublime. O criador pode até permanecer na memória, mas, ainda assim, ele morre um dia. Ofereço a vocês a eternidade. Melhor que ser o artista é ser a obra. Por que não ser uma canção do Chico Buarque. Uma canção nunca morre.
Foi um êxtase geral. A ideia trouxe uma perspectiva nova àquelas pessoas. Algo empolgante e perturbador ao mesmo tempo: Pensar numa existência que combinasse a genialidade com a imortalidade. E ainda, tentar imaginar o que poderia significar a possibilidade de existir enquanto uma obra de arte.
Tornou-se uma grande festa. Chico Buarque se transformara em “Pedaço de Mim”. Uns três ou quatro, que moravam em Niterói e aguardavam a estiagem para atravessar a Baía de Guanabara, lembraram-se do Museu de Arte Contemporânea, projetado por Niemayer. A professora de Literatura queria ser um filme, “Cinema Paradiso” era o seu preferido.
Todos se riam de tal maneira, que olhando a cena era impossível não recordar o botequim dos velhos tempos, onde a cerveja rolava, mas antes de a língua enrolar, havia muita conversa boa. E quando já nem supunha quantas tulipas eu havia entornado, comecei a pensar naquele bar como uma Academia, a dos sábios e não dos ginastas.
E assim foram passando as horas, sem que ninguém percebesse. A Guernica, de Picasso pedia um petisco ao incansável Athaíde. Ao mesmo tempo, um poema de Drummond permanecia sentado ao fundo do balcão, com um sorriso juvenil de cobrir o rosto inteiro. Tagarelas, os três “Chefões” levantaram juntos para aliviar a bexiga e quase tropeçaram num drible do Garrincha. É chope, sabe como é...
Quando alguém perguntou o que eu gostaria de ser, não tive dúvidas e discursei, bêbado de fazer inveja a Herculano Joça:
- Não quero ser imortal. Vou continuar gente mesmo. Mas, em homenagem ao nosso amigo da Bíblia aqui presente (sim, ele não arredava pé), queria convidá-los agora para uma nova religião. Isso mesmo! Porque aqui, neste momento, sinto-me em um templo, num local sacro. Também faço questão de ser o fundador de nossa igreja, a qual batizo como “A Santíssima Igreja dos Negadores da Mediocridade”! É isso que quero ser.
Athaíde gargalhava. Trouxe três bandejas de chope para o eufórico brinde que encheu de “vivas” nossa fundação. Pessoas cheias de orgulho, batendo tulipas e conversando sobre grandes realizações da humanidade. Guerras, comédias, monumentos. Versos, tecnologia e canções. Pinturas, estátuas, máfia. Comidas, bebidas e crimes, todos perfeitos...
Foi assim que aquela noite terminou. Ainda que contra a minha vontade, uma manhã quente chegou rápido e trouxe uma dor de cabeça estrondosa, pra não deixar dúvidas de que havia voltado ao mundo real, sem igreja, sem eternidade e, por favor, sem chope, pelo menos até a ressaca passar.
“A Santíssima Igreja dos Negadores da Mediocridade” foi fundada em certa noite, quando as águas de março nos trouxeram, aos seus adeptos, a possibilidade real, não de sermos geniais, mas antes de perceber o quanto ainda pode ser divertido sonhar.
Leônidas Falcão