OS SAGUIS

Tão logo aposentou-se, a renomada arquiteta Helena Alcântara decidiu morar num sítio distante do centro urbano. Era um lugar lindo, margeado por uma floresta densa, repleta de pássaros cantantes e outros bichos, flores de várias espécies, árvores frutíferas e maravilhas afins. Passava horas cuidando de plantas e contemplando a paisagem apaziguadora. Gostava de atrair animais silvestres para a varanda ao fundo da casa, oferecendo-lhes alimentos, mesmo sabendo que não precisavam. Dentre os bichinhos atraídos por sua generosidade, havia um grupo de oito saguis, pelo qual nutria um carinho maior. Os primatas faziam visitas diárias, ávidos pelas guloseimas ofertadas: além de bananas, cereais e geleias. Os poucos conhecidos que possuía cansavam de repreendê-la por tal gesto irresponsável, mas de nada adiantava. “São meus amigos, são meus companheiros!” – dizia.

Mas Helena não conseguiu desprender-se totalmente das paixões materiais de sua condição humana e capitalista; possuía uma vasta coleção de joias e passava boa parte do tempo apreciando colares, anéis, brincos e pulseiras de ouro maciço, diamantes, esmeraldas, safiras e rubis. Era a saudade, sua riqueza... Era o que restou do passado de eventos luxuosos na alta sociedade brasileira. Enfeitava-se com os brilhos caros, vestia-se com roupas criadas pelos mais famosos estilistas e dançava diante do espelho, a reviver acontecimentos na memória. Por ali, passavam amores vividos ou não, assumidos ou não, correspondidos ou não; a juventude e sua implacável mas inocente presunção voltavam fortes e soberanas. E assim, dividia-se entre passado e presente, riqueza e simplicidade. Porém, sabia que viver daquela forma, partida em duas, não era saudável, precisava resolver-se única. Mas como?

Numa de suas tardes tão iguais, depois de apreciar a natureza e suas joias caríssimas, foi vencida por um sono relaxante e arrebatador. Adormeceu como rainha, sobre a cama de madeira nobre, acolhida pelo lençol de seda pura, entre metais e pedras preciosas; os porta-joias abertos rutilavam dourados e pratas, vermelhos e verdes, azuis e cristalinos. Por duas horas, permaneceu adormecida como a bela, sonhando deliciosamente com bens de infância, amenidades e coloridos... Enfim, acordou de súbito. Mal abriu os olhos e lembrou-se: “Meu Deus, esqueci as portas abertas!”. Ao assentar-se na cama, levou enorme susto quando percebeu o quarto invadido pelos oito saguis, que se apossaram das joias, arrebentaram-nas e espalharam pedras preciosas por todos os cantos da casa; numa euforia desenfreada, emitiam silvos vigorosos, como se rissem da traquinagem, pulando por entre os móveis e quebrando coisas. Helena, desesperada, gritou:

– Saiam daqui, seus monstros, seus ladrões! Traidores! Ingratos! Saiam!

E avançou neles, numa ilusão desvairada de poder detê-los, sem o menor temor de ser agredida. Os macacos pareciam entender o que se passava e intensificavam as provocações e investidas, circulavam, aos saltos, ao redor da mulher, puxavam sua saia, ameaçavam tomar seu colar, os brincos em suas orelhas. A farra estava boa! Quando finalmente se cansaram, foram embora levando as peças ou seus restos para a mata, onde jamais seriam encontradas.

“Fazer o bem e receber o mal? Revoltante! Ora, mas que tolice, esses bichos não sabem o que são bem e mal.” – pensou Helena. Entendeu que não receberia da natureza reconhecimento por sua bondosa doação, por sua grande importância e não aceitava ser apenas um mero ser. As barganhas presentes nas relações sociais lhe eram imprescindíveis, estavam impregnadas em seu íntimo. Então, resolveu-se urbanamente humana. Vendeu o sítio e voltou para sua cobertura, na avenida mais badalada da cidade.

Marco Aurelio Vieira
Enviado por Marco Aurelio Vieira em 27/02/2013
Reeditado em 11/07/2016
Código do texto: T4162330
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