Vê-se as pessoas como nos vemos no espelho

Se há alguma coisa de que sinto uma certa saudade, era da época das sementeiras em casa do meu avô João. Nesse dia todos os filhos, capitaneados pelo meu tio António, ajudavam na sementeira do pai.

Mal o sol começava a romper, já os bois puxando a charrua rasgavam a terra. As noras e netos seguiam atrás, a picar e revirar os torrões que a aiveca não voltou. Sendo um dia de grande azáfama, nem por isso deixava de ser alegre, principalmente para nós os mais novos. Depois da terra lavrada, era passada com a grade, para a aplanar antes de semear os cerais. Seguia-se nova passagem para cobrir as sementes.

Serviam-se três refeições de garfo, comidas ali mesmo no campo: cerca das dez horas servia-se o almoço, seguia-se o jantar entre o meio-dia e a uma e à tarde, perto das cinco horas era a merenda.

É ao jantar que a minha prima Rosália, a mais velha dos netos diz: “No Caramulo apareceu uma coisa que fala como um rádio e vê-se as pessoas como nos vemos ao espelho.” Foi a minha primeira informação sobre a televisão.

Tinha aparecido ainda há menos de um ano (1957) a televisão em Portugal, quando a associação da minha aldeia comprou um televisor e os não sócios pagavam 1$00 para assistirem àquela maravilha. No dia da inauguração foi um corrupio para verem aquela coisa que mais parecia bruxedo. Escondido pelo avental da minha vizinha, também eu pude entrar e assistir.

O rádio já eu conhecia de tenra idade, a dona Gracinda tinha um, recordo-me que a primeira vez que o vi, a minha curiosidade fez-me perguntar ao senhor Álvaro – «Ó xô Álvao, como cabem aqui dentro as gentes que cantam»?

«Não é gente, são ratinhos porque são pequeninos para caberem aí dentro».

O senhor Álvaro foi aos seu afazeres deixando-me deliciado a ouvir aquela maravilha. Sem ninguém ao pé de mim, eu mirei e remirei até ver umas luzinhas na parte de trás da telefonia. Por entre os buracos traseiros, aquelas luzinhas seduziam-me, deveriam fazer parte do arraial onde os ratinhos tocavam.

Com os meus deditos de cinco anos tacteava todos aqueles orifícios e não sei como, enfiei um dedo num deles apanhando um choque. Em grande aflição dou um berro e corro para o senhor Álvaro chorando: – «Ó xô Álvao, os ratinhos morderam-me».

Lorde
Enviado por Lorde em 26/02/2013
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