O Pequeno Gabola
Em milhares de lares brasileiros, pela manhã, muitos garotos de treze anos de idade são acordados com solícitos comprimentos de bom dia, entre eles: ‘ bom dia meu amado filho’, ‘ bom dia meu anjo, dormiu bem?’, ‘ bom dia campeão, pronto para ir à escola’; entretanto, o máximo que nosso pequeno gabola conseguiu ouvir hoje ao despertar depois de uma longa noite de treze graus celsius, que o piso da marquise suja e o vento sul impiedoso, desgraçadamente, transformam em dois, foi um sonoro grito de‘saia daqui seu moleque fedorento, vai achar outro lugar para dormir!’.
Isso mesmo, nosso pequeno que acaba de ser escorraçado, como vimos acima, se chama gabola, não perante o estado é claro, seu nome de registro é Gabriel Bonifácio Lacerda, porém, não se engane leitor, ga-bo-la não vem das iniciais de Gabriel, Bonifácio e Lacerda, coisa que muitos poderiam supor, e sim do modo que um dia um velho tocador de sanfona o chamou em quanto este engraxava suas botas de couro preto: ‘ moleque, pare de contar histórias e engraxe logo essas botas, seu gabola’. Sabemos que esse pequeno miserável possui um nome que é reconhecido perante o estado, muito belo, diga-se de passagem, em função de que o mesmo carrega no bolso esquerdo de sua mochila velha um documento que atesta tal fato, como ele conseguiu ter acesso a este documento? Humildemente, não sei, entretanto o documento está ali no bolso esquerdo da mochila do pequeno disputando espaço com as embalagens, já vazias, de algumas gomas de mascar . Essa mochila, aliás, torna-se relevante para nos por um único motivo, pois ela é a prova de que algum dia este garoto recebeu algo do estado, haja vista que tal mochila de cor preta com listras verdes, que carrega em seu centro a bandeira do mesmo, faz parte de um quite de material escolar que é entregue aos alunos da rede pública de ensino a cada começo de ano letivo. Até onde sabemos o máximo que o estado fez por nosso pequeno se restringiu a isso; uma mochila e alguns lápis de qualidade duvidosa.
Além de sua mochila, que contém exatamente uma blusa de lã, duas calças de algodão cinza e um cobertor velho, que lhe fora dado por uma velha senhora do prédio em que costuma dormir quando chove, pois há ali uma escadaria que serve de teto nesses dias chuvosos em que nossa cidade se vê em pleno caos, também carrega um livro comprometido pelas traças, que, segundo ele, é o seu ‘ tesouro’, se o tal livro não for aberto não será possível identificá-lo, tendo em vista que a capa já não ostenta mais um título, porém na contracapa do mesmo, surge imponente em letras negras o titulo apagado da capa “Bíblia Sagrada”. Gabola também possui uma caixa de engraxate, que lhes confidencio foi feita a partir de um compensado de madeira furtado de uma obra localizada próximo a catedral municipal, pintada de azul e que leva em uma das laterais um adesivo com os seguintes dizeres ‘no estress’. Essa caixa faz dele um dos melhores engraxates da região em que perambula durante o dia, porém, não ouse chamá-lo de engraxate, nosso garoto também possui certa vaidade, gosta de ser chamado de “pequeno empresário do ramo da engraxataria”. Com essa ocupação gabola consegue juntar alguns trocados durante o dia, trocados que lhe permitem comer coisas dignas de um estomago humano, haja vista que muitos, assim como ele, que vivem nas ruas, para não sucumbir diante da fome, comem coisas que até mesmo um cão rejeitaria . Quando o dia supera as expectativas do nosso pequeno e as moedas de um real transbordam os pequenos bolsos de sua calça suja, ele se dá ao luxo de ir até uma confeitaria próxima a um tradicional colégio católico do centro da cidade onde se depara com o oposto de sua realidade, ali garotos bem vestidos recebem longos abraços de seus pais que os esperam em frente ao portão da escola após terem tido uma longa tarde de estudos dedicados aos cálculos e as letras. Entretanto, não é em função dessa triste contemplação que nosso pequeno vem até a essa parte da cidade, como disse antes, seu destino é uma antiga confeitaria que vende, segundo ele, os melhores sonhos de todo o mundo. Podemos afirmar que diante de uma vida amarga este é um dos raros momentos de sua miserável existência que gabola consegue torná-la um pouco mais doce, tudo isso graças ao confeiteiro, que com entusiasmo todos os dias prepara os deliciosos sonhos, dos quais alguns, repousam agora em um saco seguro pela mão do garoto.
Algo que logo nos surpreende em gabola é o modo como fala de sua cidade, todas as ocasiões são propicias para um elogio, basta que lhe dêem trela e ele começa “o senhor notou como são belas as praças e os prédios antigos da cidade? Inclusive, disseram-me, um deles leve o nome de um de nossos notáveis poetas”,” da região sul, tenha certeza meu amigo, nossa catedral é sem dúvida a mais bela! e o que dizer daquela ponte, aquilo sim é um cartão postal de verdade” e assim continuaria por um longo tempo caso não fosse a impaciência de seus fregueses apressados. Tais elogios em excesso surpreendem, pois, é notável que aquele garoto cultiva por aquela cidade um amor incomum se considerado a muitos outros moradores da mesma e, no entanto, recebe dela apenas indiferença, negligência, repúdio etc. para ser justo ele recebe tais tratamentos das pessoas que ali vivem, mas o que é uma cidade se não os seus habitantes? Podemos concluir que daí resulta algo de muito estranho, alguns pagam prodigamente com amor e recebem em troca apenas aquilo que há de mais repulsivo no homem.
Em uma dessas ocasiões em que gabola rasgava elogios a sua cidade ao mesmo tempo em que engraxava um par de sapatos, um pouco gasto nos calcanhares, mas que certamente levaria seu dono a muitos lugares ainda, gabola notou que o dono dos sapatos não se mostrava impaciente, como era de costume entre seus fregueses, diante de seu falatório, pelo contrário, aparentava estar se deliciando com a incessante tagarelice do moleque, gabola então se sentiu confiante e fez uma pergunta, para alguns, muito atrevida vindo de um moleque de rua, “o que o senhor faz na vida?” , para seu espanto, obteve uma resposta em um tom tão doce como os sonhos que outrora comera em frente a confeitaria, “ eu sou professor, porém faz dois anos que solicitei minha aposentadoria”, agora, mais confiante do que nunca, gabola lhe dirigiu outra pergunta “o senhor era professor de que ?” seu novo cliente, pois até então nunca havia prestado serviço para aquele senhor, respondeu “ durante vinte e cinco anos de minha vida dei aula de filosofia em uma universidade aqui da capital” tão logo este senhor pronuncio a última palavra da frase que vimos acima, e ele levou as duas mãos ao centro do peito e em um movimento lento caiu de lado, naquilo que em muitas vezes é colchão do pequeno, no chão. Gabola diante de tal situação não teve outra reação a não ser correr até o posto policial que ficava a uma quadra de onde estavam para pedir socorro pelo senhor que jazia estendido no chão há alguns minutos dali, e de fato o fez, quase sem fôlego quando chegou ao posto policial comunicou a um dos PM’s que ali estava lendo um desses jornais barato cujas notícias não possuem relevância alguma, que um senhor precisava urgentemente ser transportado até o hospital mais próximo, visto que acabara de passar mal diante dele a uma quadra dali. O PM e o garoto entraram na viatura que estava estacionada ao lado do posto e partiram para o local, mas quando chegaram lá, para surpresa de gabola, o senhor não estava mais ali, já haviam lhe prestado socorro.
Fim da Primeira Parte