Asas Descoradas
Um gole no café, uma olhada nos papéis.
Provas, provas e mais provas.
Assuntos até não acabar mais.
Parágrafos coloridos com a caneta marca texto verde limão.
Suspira, meche nos cabelos, checa a perfeição das unhas, outra olhada nos papéis – ela tem que se dar bem.
Tudo depende dela.
O mundo depende dela.
Pelo menos o seu mundo – mesmo que ele, às vezes, não pareça digno de ser chamado de 'seu'.
Ela precisa ser coerente com as altas expectativas de todos. E com as suas, que são mais altas ainda.
Tantas dúvidas, incertezas, pressões, e, por vezes, vontade de gritar, chorar, sumir, jogar tudo para o alto – mas ela não pode se dar esse luxo.
Conforta-se com a ideia de “encontrar alguém para dividir o fardo”.
Alguém sempre tão distante...
A lanchonete dá vista para um rio, garças esvoaçam sobre a água pintada com a luz da manhã; para o estacionamento, onde um grupo de pombos consegue achar comida entre os blocos de concreto do piso; para o céu, onde nuvens correm no azul que ela um dia sonhou em tocar.
Mas seus olhos não saem do papel.
Os papéis são mais importantes, ali está o seu futuro.
Mesmo que todas aquelas palavras decoradas venham a ser esquecidas após os exames.
Uma borboleta pousa numa mesa, à sua frente.
Ela leva um tempo para perceber, quando olha, já voou.
Nem viu qual era a cor.
“Aquela conta vai vencer amanhã...”
“Se eu não começar a perder peso vou acabar mais redonda que essa mesa...”
“...sapatos novos para combinar com o vestido da festa...”
“E será que ele vai estar lá?”
“Concentra, concentra, menina...”
De volta aos papéis...
Uma folha branca no fim de um capítulo.
A caneta em sua mão parece ganhar vida.
Faz um gesto para escrever... e, então, para.
Há quanto tempo não escreve? Haveria algo para por na folha branca? Seria mais importante que 'os papéis'?
“A borboleta voou, e eu nem vi qual era a cor”
Escreveu em verde limão com a ponta grossa do marca texto, numa letra maior que de costume.
Suspirou.
Fez um rabo de cavalo com o cabelo que o vento não deixava quieto.
Bebeu o resto do café - meio frio.
Se levantou, arrumou as coisas, pagou o café, e partiu com aquelas palavras ecoando na mente.
“A borboleta voou, e eu nem vi qual era a cor”
- É. Essa é minha vida. - Suspirou.
Não era mais escritora, pintora, cantora, dançarina, nem poeta.
Seria secretária durante o dia, e estudante à noite – como muitos dias atrás.
De volta aos papéis.
Papéis estes que, de tão preenchidos, não deixavam espaço para sua própria escrita.
E o que ela escreveria?
Já não sabia mesmo.
O vazio tomava conta dos dias, enquanto ela tomava conta do futuro.
Sabendo que chegaria o dia em que tudo iria embora.
Talvez, sem que ela visse a cor.