Menina

MENINA

Copiava tranquilamente o texto que a professora escrevia na lousa, até que se enroscou numa palavra desconhecida. Quase de imediato projetou na tela meio amarrotada de sua mente uma imagem tão vívida e convincente que até ela se surpreendeu. Uma mesa robusta, ao ar livre, com tampo de uma grossa madeira úmida, meio carcomida pelo tempo e pelas intempéries. A tinta azul celeste que ainda morava na mesa, agora desbotada, adornava as pernas com bolhas descascando em bolhas . Nas grossas tábuas do tampo, vários, vários não, muitos, pregos grandes, parcialmente fincados em fileiras e alturas irregulares. Sim, era isso que significava a palavra desempregado. Pregos pregados numa mesa de madeira.

Gabriela manteve seu discreto contentamento por decifrar aquela palavra desconhecida, desafiadora, e permaneceu equilibrada em meio aos distúrbios daquela classe em algazarra. Admirando o significado da palavra recém decifrada, e com a borrachinha fixada na extremidade do lápis sextavado, coçou a testa e correu o olhar pela gritaria quase histérica da classe. Até entendia porque os colegas conversavam demais, tão indisciplinados, não prestavam atenção e não se aquietavam um minuto durante a aula. Concordava que as aulas eram chatas e desinteressantes mas tinha aprendido que valia a pena e compensava suportar aquele desafio. Era como se ela ouvisse e obedecesse uns cochichos, ou vozes internas que aconselhavam a moderar, e controlar seus instintos e impulsos infantis. Era como se fosse a proposta de uma troca. Você quer ser mocinha ? Alguem maior, mais sabida ?, perguntava e respondia dentro dela. Então faça isso, assim. Era por causa disso que ela comia brócolis, jiló, cebola e nata, coisas que nem eram assim tão ruins e intragáveis, que não pudesse come-los. Só não achava uma comida gostosa, mas comia porque diziam que ela tinha que comer, se quisesse ficar moça, bonita, inteligente e saudável. E era isso o que ela mais queria.

Aprender, compreender as coisas e as pessoas era um interesse constante. Divertia-se como em qualquer outra brincadeira. Era seu jeito mais gostoso de ser criança. Era igual a receber um sorriso de aprovação e concordância dos mais velhos.

Pouco tempo depois numa conversa, ouviu dizer que eles eram inquilinos. Em busca de um sinal, olhou para a mãe que continuou conversando tranquilamente sem dar nenhuma pista. Se sentiu confusa, perdida num pequeno enigma que apertava seu ninho familiar. Nós somos inquilinos, afirmou repetidas vezes. Um mal estar vago e impreciso percorreu sua imaginação criativa. Inquilino, inquilina. Seu olhar indeciso sentia vergonha e medo do que uma descoberta imprevista podia causar. Antes de ceder a esse turbilhão que a puxava para um poço sombrio junto a seus pais e irmã, constelou em sua cabeça uma, outra, depois mais outra palavra, como setas indicativas , apontando um caminho alternativo e diferente. Inquilina era outra palavra para cartolina. Queria dizer que eles eram limpinhos, lisos, macios para receberem o capricho do desenho e das letras bonitas, colagens, a própria purpurina, outra palavra grudada à cartolina. Também como eles, brilhantes, especiais, chics. Gabriela ficou conformada e satisfeita até sentir a necessidade de uma nova versão. Embora não precisasse porque a palavra estava carimbada em letras grandes e legíveis em sua memória, ela escreveu, variando caligrafias e pressões diferentes com o lápis, a mesma palavra, em várias linhas da última folha do caderno. Ter um domínio e um controle sobre as letras, sobre as palavras, era como desmistificar e perder o medo de alguma coisa, ser maior e mais forte que a própria palavra.

Alheia às conversas e bagunças dos colegas de classe, ela abriu o caderno na última página e releu, ensimesmada, as várias e diferentes caligrafias da mesma palavra. Escolheu uma que lhe parecia mais forte e bonita e se ateve nela. Levantou o braço e fechou o caderno. Quando atraiu o olhar displicente da professora, que perguntou o que ela queria, tomou coragem e perguntou:

___ Professora, o que quer dizer que uma pessoa é inquilina ?

___ Inquilina é ..... Acho melhor vocês criarem o hábito de procurar essas palavras no dicionário !! Já falei isso pra vocês.

Aquele momento, respiração presa, suspensa, dera em nada. Continuava descalça, andando insegura naquele chão enlameado de uma curiosidade escorregadia. Ela precisava estar em equilíbrio e muito atenta, pra não se deixar ser devorada pela palavra. Na saída foi decompondo a palavra equilíbrio, cantando baixinho cada sílaba, enquanto pulava uma amarelinha imaginária, subindo e descendo o degrau da calçada pra rua. Brincava carimbando com uma perna só cada sílaba. No, in, qui, li, no. Pequenos passos de dança da coreografia amarelinha, pulinhos na sarjeta, em baixo, e no céu, na calçada.

Desligar-se de tudo, não pensar em nada, era uma outra brincadeira em que se esbaldava em delícias quando estava sozinha. Não era sempre que conseguia, nem achava que era uma brincadeira fácil ou simples. Ela sabia, ou melhor, sentia, que isso era uma habilidade a ser assegurada e ampliada. Começava sempre que observava, e as vezes conversava, com bichinhos do jardim da frente. Uma joaninha, um gafanhoto, até uma minhoca. Começava com uma conversa de comadre, devagar, sem perceber ela se distraía e aquele aconchego era coberto por uma espécie de névoa muito transparente como um véu levíssimo, sem palavras, nem pensamentos, sem nada que pudesse ser descrito ou reconhecido. Era a beleza de uma vastidão infinita, que cabia ali naquela conversa sem palavras, naquele momento tão extenso que não podia ser contado pelos ponteiros do relógio. Também acontecia quando olhava a chama da vela, ou mesmo de uma fogueirinha, e no céu com as abstratas nuvens quase imóveis, passeando lentamente suas abstrações, desfazendo-se em dissolvimento no infinito azul.

Chegando da escola, ainda do lado de fora quando girava a tramela do portãozinho de ripas, cerrava os olhos e seguia, construindo internamente o caminho, desenhando na mente todo o percurso até sua cama, onde sentava ao lado da bolsa com material escolar, para então tirar os sapatos, as meias e deitar pra continuar explorando e se divertindo naqueles espaços, onde era permitido ser, e criar, o que sua vivaz imaginação conseguisse.

Quando sentia que estava diante de um degrau, de uma porta, de um obstáculo, de um móvel, parava, e sem mesmo espiar pela frestinha do olho semicerrado, confirmava seus sentidos tateando com pés e mãos seu mapa interior, e continuava até onde se propunha. Escovava os dentes, pegava o leite na geladeira, fazia o achocolatado, bebia e lavava o copo. As vezes escrevia. Tudo às escuras só pra passear, e conhecer, e incorporar seu outro lado.

Comentando consigo própria sobre o retrato de um artista numa capa de revista, enquanto procurava algo.

___E que lindos olhos ele tem !! E que lindo...Inquilino. Depois de dias escondida aquela palavra reapareceu. Voltou provocativa. Dessa vez aparecia em letras de ripas magras, altas, avermelhadas. Inquilina usava salto alto. Inquilino usava botina e andava num longo e estreito corredor. Gabriela se convenceu de que não devia ser nada tão ofensivo , ou vergonhoso. Afinal era o que ela e sua família eram.

Quando lia, ou escutava uma palavra nova, ou diferente repetia várias vezes, alterando a voz, prolongando as sílabas, enfatizando ou trocando as tônicas, só pra ouvir sua musicalidade. Nessas brincadeiras a palavra não significava nada, era só uma sonoridade. Repetia cantando, experimentando, várias modulações da mesma palavra. Costurava e amarrava, encaixava o final de uma no começo da outra, formando um longo barban tesou rabane telefo negrei rodoviari artis tamanduá ássanha domin goiaba dano nebli namorado !. Mesmo sem saber com muita clareza, ela tinha uma noção, a impressão de que as palavras eram como ferramentas, instrumentos que tinham que ser usadas corretamente em cada função e necessidade específica. Sua mãe mesmo já lhe havia ensinado, e ela aprendera direitinho, que o uso de umas palavras corretas eram como chaves douradas que abriam caminhos, conversas, portas, cadeados, segredos, amizades.

Foi mesmo bem cedo que começou a se encantar com o som e o sentido das palavras, e mesmo com seu poder de criar e construir. Assim como de destruir, demolir. Achou bem interessante aprender que não apenas o jiló e o remédio eram amargos, mas também as pessoas podiam ser, também doces e azedas.

Foi quando ganhou um quebra cabeça de poucas peças, e sentada no chão da sala para montá-lo, imaginou cada pecinha como se fosse cada palavra, que tinha que se encaixar em outra, seu par, para formar a figura, a imagem, ou a palavra. Ela descobriu que a palavra tinha a sensibilidade do sopro, do toque, e o peso da marreta na bigorna. Que ferramenta, farolete na escuridão é a palavra, e seu uso, pra se ser, se comunicar com as próprias palavras, em cada personagem, em cada letra.

Gabriela gostava e compunha no capricho pintando em sua tela mental as imagens que criava. Quando ouviu pela primeira vez, imaginou que essa palavra fosse um tipo, ou um estilo, de cadeira de braços tatuados, com relógio e a mão espalmada para receber o cafezinho ou refrigerante. Do encosto brotavam cabides, ganchos e galhos ornamentados onde se pendurava chapéus, guarda chuvas, bolsas, réstias de cebola. Todo ele de madeira boa, firme, em tons amarelos com pequenas manchas rajadas, puxando ao violeta mais escuro, em veios estreitos e longos. Textura convidativa ao toque, fosca artesanal, assento e encosto em palhinha trançada. Confortável e bonito de se olhar, era a criação da forma daquela coisa que ela chamava de candelabro. Antes de se convencer de que candelabro era aquele objeto doméstico, estiloso, ela havia imaginado que essa mesma palavra definisse um tipo de pessoa, que pecava pelo exibicionismo, presunção e narcisismo, que também costumava exagerar nos ornamentos e adereços que ostentava, sem noção do iminente risco do ridículo. Fulano é galhofeiro, beltrano e candelabro. Mais tarde, maiorzinha, entendeu que a palavra esguia, magra e alta da branca vela, combinava e se entrosava. Casava bem em gênero, número, diâmetro e grau de parentesco nenhum com candelabro.

A menina tinha uma verruga no joelho. A palavra que designava retratava bem essa coisa. Era uma palavra indigesta e cinza, e Gabriela aprendeu novas palavras que nominavam mistérios, essas abstração emocionais em que é muito importante identificar e conhecer, diagnosticar, lidar com esse demonstrativo das dores da vida. Conhece-lo, acolhe-lo, dominá-lo com uma palavra melhor. Gabriela vivenciou numa dimensão e numa sensibilidade doce, madura, isso que foi mais uma experiência. Palavra que acrescenta, aduba, e irriga essa terra da vida. A menina leu, olhou, sentiu, percebeu as nuances, as sombras, os estorvos, os desvios, passou pomada e não tem mais. Ela seguia receitas, como a avó. A crença em alguma magia, um encanto que as palavras não alcançavam porque a palavra é um recurso, um elo, um fio desse tecido. Essa tapeçaria de letras que formam palavras , que formam frases, ofensas e poesias. Gabriela criou receitas para suportar tristezas, se tornar cúmplices dela, receitas de olhar fotograficamente, receitas para hai-kais. O caldeirão no fogo com os ingredientes verdadeiros e autênticos era receita mágica para sentir na pele sensível de todo o corpo brisa abraçando. Receita para olhar a luz se evanescendo em sombra.

Competente, cuidava direitinho da casa. Criativa em decorar o pequeno mármore dos avós, com folhas secas, pétalas caídas,ramos de capim, galhinhos de araucária. Bonita manifestação, visível e palpável de um carinho. Os pés, quase sempre descalços, pisam na grama, na areia, nos cachos de uva, no carpete e na terra. Tão espontâneo quanto o correr do tempo, da pulsação da natureza. Tão consciente do fio de aranha costurando o instante e a eternidade, ou a eternidade se alimentado de pequenos instantes e ficando infinitamente eterna, pra todos os lados, das luzes e sombras.

A voz que conversava dentro da sua cabeça sem mentir, podia ser da avó para criar uma coreografia, como ritual, pra fazer uma receita saborosa e mágica. Gabriela tem um b, de bruxa. Talvez nem imagine. Na sala de aula, se sentia bastante sozinha, isolada, não compreendida pelos colegas, que ela os avaliava como jovens com dificuldade em entender o óbvio e o lógico. Meninos são pretenciosos, mimados, ainda convencidos de sua superioridade machista patriarcal. Dizia. E que ser desse jeito era receita de não brincar.

Uma vez tiveram umas galinhas. Gabriela tinha medo delas, até que achou um ovo. Passou o lápis naquela superfície firme, rígida e finamente texturizada, e escreveu ovo. Sentada no chão, apreciando o nome ovo, escrito no próprio. Sua letra ovo. Ovo, avo, avó, avô, e lembrou da avó, que costurava os furos das meias, com um ovo dentro. Tudo podia ser poesia. Qualquer coisa aparentemente boba e banal , podia ser bonita e mágica. Tudo era respiração e ritmo, com fundo musical, no ar o cheiro de terra molhada pela chuva, a luz e a brisa brincando no silêncio As vezes Gabriela se surpreendia no trivial serviço de lavar um copo, quando era provocada por um sentimento tão aguçado e inquieto, que pulsava, e vibrava, arrepiando por dentro sua pele morena. Na temperatura da água que ela sentia se espalhar pelo corpo, sua transparência, a magia dos desenhos da espuma, o encanto d’água. Lavando um copo, com espuma e detergente e a torneira aberta, momento em que ela se distraiu, não lembrando que era engajada, e participante de umas tribos com deuses ecológicos, e que deveria economizar água, procurou e não achou, não conseguiu inventar, ou criar uma palavra para descrever a água passando, deslizando pelo vidro. Tudo tão transparente. A mão dela amparava o tempo, feito líquido, num fluxo, de uso, de fluir. Encantada ao se perceber como protagonista de uma descoberta íntima e pessoal. Quase só ela saberia avaliar, reconhecer, tornar-se. Vasculhou todas as gavetas, prateleiras, esconderijos e não encontrou uma palavra, uma sequer. Então Gabriela tambem começou a aprender que suas emoções eram tão vastas e misteriosas, que as palavras não alcançam, nem pra nominar algumas sensações. Ela então se sentiu tão tão inteira, ligada a tudo que nos rodeia com bilhões de finos fios invisíveis , até o infinito da nossa vizinhança. E fazemos parte disso tudo. A menina gostou e se divertiu muito com essa nova brincadeira de sentir a dualidade da vida. Maiorzinha, descobriu a senha do jogo:

__“Eu sou o limite, minha pele é o muro de arrimo a separar e unir dois universos, um para fora, outro para dentro de mim. Espelho meio embaçado a refletir o mundo, tão sujo, lindo, imundo, rico mundo.”

19/12/2011