O chamador
Chovia. A casa recebia a pancada da chuva e cuspia sua dor
pela calha. Aos pés formava-se um riozinho que levava a dor até se
perder de vista. A casa servia de alojamento. Lá dentro inexistia o
costumeiro silêncio das noites chuvosas. Um vozerio acompanhado de
rizadas bêbadas e palavrões ecoava no ambiente. Jogava-se o truque.
Eram sete. Quatro jogavam, três se revezavam. E apostavam. E
torciam. E vibravam e gritavam, pois o truque, é do baralho, o jogo
mais avacalhado que já se ouviu falar.
Lá fora a chuva barulhenta. Os pingos grossos ferindo a janela.
O relâmpago riscando o céu constantemente. A resposta do trovão.
Eta chuvona. Lá dentro entusiasmo crescente. Os olhos fixos nos
sinais. As mãos trêmulas. O dinheiro na mesa. A cachaça. As rizadas.
a fumaça. Os palavrões. TRUCO! __ Vale seis...
A luz piscou. Os homens uníssonos olharam-na, indignados. Só
ameaça. Por via das dúvidas apareceram dois gasômetros.
Não eram os mesmos quatro que jogavam agora. A chuva
melhorou um pouco. Já não se fazia tanto barulho. De repente a porta
se abriu. Beijo, o mais velho da turma, distribuindo as cartas, o
cigarro de palha num canto da boca, falou sem se voltar para a
porta:
__ Quem tá escala das dez se manca que o Chamador taí...
__ Quem está aqui não é o Chamador, não, sou eu, o Novo Chefe...
Nunca em noite de estrelas e lua cheia o Antigo Chefe pusera os
pés naquele recinto. Beijo fez-lhe as honras:
__ Õ sô Novo Chefe, acaba de entrar. Tá se molhando aí, vai pegar
um resfriado... faz favor... desculpe a fumaça, a bagunça...
O Novo Chefe não se mexeu. Com uma das mãos apoiada na porta,
a capa respingando, os olhos vistoriando o ambiente, deixou escapar
uma avalanche de perguntas, críticas e considerações.
__ De quem é o baralho? Passe ele pra cá...
__ Do Antito...
__ Num vem por culpa no coitado__ cortou a voz do Beijo__ O
baralho é nosso, doutor, toma... Antito tá viajando, nem sabe disso
aqui...
__ Muito bem... de hoje em diante qualquer que for pego na jogatina_
Pausou para lembrar as leis, os parágrafos, o Regimento Interno, a
Constituição, blá, blá, blá blá, e continuou: Pois é, qualquer um, e
avisem os outros também, levará dez dias de punição, sujeito a multa
e transferência...
terminado o sermão, exigiu nome e matrícula de cada um. Beijo não
deixou que ninguém se delatasse. Ele mesmo o fez. Citou nome,
matrícula e o número da botina de cada um. Meia hora depois,
consciência tranquila, dever cumprido, o Novo Chefe, se foi,
dirigindo-se a Residência, sendo seguido pelo Beijo. Algum tempo e ele
de volta, junto com a chuva que caía mais forte. No interior da casa
silêncio, desânimo, o Beijo propõe:
__ Ei, pessoal, vamos continuar?
__ Mas beijo, o Novo Chefe...
__ Tão com medo? Uma suspensãozinha de nada... não vai fazer nem
cosquinha... então, vamos?
E tirou do bolso dois baralhos novinhos em folha. Lá fora, chovia.
Chovia muito.
Observação: DO LIvro: O Doido e Outras Maluquices - Robergom
Edição: 1967