O Pé- Frio

Ginico desceu a rua num folego só. Tava seco num golo. Entrou

no buteco do Binha. Todos o olharam, aliás, o fuzilaram. Pois Ginico

era tido como o Pé-Frio, o Notícia-Ruim, o Ave-Agourente. O mundo

inteiro sabia disso e aproveitava. Janela quebrada, pneu furado, marido

traído, e qualquer mazela:

__ Sabe quem tava por perto? O Ginico...

Binha lavava um copo quando ele entrou. O copo soltou-se, não

se sabe como, e se espatifou no chão.

__ Aí, começou o azar... já tá devendo um copo.

Ginico não ligou. Acostumara-se. Tudo de ruim acusavam-no. Teve

culpa se no dia do seu nascimento a farmácia do Zico pegou fogo?

Se o Juca matou a sogra; se o prefeito foi cassado, etc, etc, etc?

Não, claro que não. Sua vinda ao mundo foi até benéfica: a cidade

ganhou farmácia nova; Juca se livrou de uma jararaca e o povo se

libertou de um sugador dos esforços alheios, e mais os etc, etc, etc.

Desde cedo revelara uma incrível inclinação para repórter. Não

havia o que não soubesse. Quem descobriu que dona Lalá traía o

marido com o médico? Ele. Quem desmascarou aquele homem bem

vestido, sempre cortês, fala mansa, amigo de todos? Ele. É claro que

foi ele. Aliás não se enxergava Pé-Frio ou fofoqueiro. Não. Cumpria

suas obrigações, seus deveres de cidadão, religioso, caridoso, e mais

que tudo preocupado com o bem estar de todos... Mas um dia seu

valor será reconhecido. Sim... A cidade inteira vai lhe cantar hinos,

cordéis serão escritos sobre ele; uma estátua lhe será erguida. O

prefeito lhe dará a chave da cidade; escreverão livros a seu

respeito. Será personagem global, capas de revistas...

Ginico nem escutava as conversas paralelas. Deixara de sonhar

e ansiava por um golo. Seu olhar cobiçava-o. Sua língua estalava

de desejo, a boca salivava. Seu vício empurrou-o para frente. Binha

notou:

__ Sem dinheiro nem pensar...

__ Mas eu tenho algo importante pra contar...

__ Disso todo mundo sabe... cê sempre tem algo a dizer e é só

fofoca. Da sua boca não sai mais nada.. e sai de perto de mim, nem

me toque... vou me casar sábado e quero casar... além de língua

solta cê é azarento que nem o capeta...

Um careca vermelho e narigudo, barriga grande e de camiseta,

emendou:

__ Se num fosse por ocê o médico inda tava aqui até hoje...

__ E tem mais__ Objetou Vassourinha__ Dona Lalá era a melhor

professora da região, apesar dos pesares...

__ É verdade... se não fosse por ela o meu filho seria um burro que

nem o pai...

O prefeito ( cidadezinha do interior tem prefeito em buteco )

aproveitou a deixa, descarregou:

__ Por sua causa, agourento fofoqueiro, é que a cidade não cresce.

Nada vai pra frente, nem sobra verbas na Prefeitura pra nada. Se

ninguém ouvisse as suas fofocas, hoje seríamos um dos orgulhos do

Estado... aquele homem que esteve aqui era filho de um grande

industrial com muitos planos para a nossa cidade. O papelão que

fizeram expulsando tão honrada e bem intencionada criatura

expulsou também o progresso... e tenho dito.

E cada um tirou a sua casquinha, sua diferença no Ginico. Aquilo foi

crescendo dentro dele. O coração foi apertando. Estava cansado de

ser tratado assim, cansado de tudo aquilo, da cidade, das pessoas, da

vida. Povo ingrato. Arrastou-se até à porta calado, lágrimas nos olhos.

Olhou aquele povo todo, a cidade...

Ginico suicidou-se, deixando-se cair na barragem que produzia

energia para a cidade. Faltou luz por mais de uma semana.

Observação: Do livro O Doido e Outras Maluquices- Robergom

Edição de 1967.