A "TIGRESA" DO "LIONS"

Desde aqueles meus remotos tempos de adolescente, época em que eu a conheci, ela sempre foi celebridade.

Pertencia ao que se denominava naqueles meus tempos de "elite da cidade", bem casada, uma fina senhora do lar e das filantropias, sempre comprometida com as causas sociais, com altos e políticos discursos nas festanças, na igreja, a fazer obras que saiam publicadas no jornal rodado ali mesmo mas que viajava a região, retrato duma cidadezinha de menos de dez mil habitantes, famosidade sempre destacada nas páginas chiques que noticiavam os acontecimentos daquele meu remoto entorno mais estendido juntamente com sua elegantérrima silhueta de madame a se 'empossar" das grifes da moda e dos demais penduricalhos que tanto me chamavam a atenção de menina adolescente.

Deveras, quando ainda somos crianças tudo nos parece bem mais intangível, tudo muito distante de nós, de dimensão infinitamente maior aos nossos olhos de senso míope para o mundo concreto...

E era assim que eu a admirava demais, àquela mulher sempre imponente, a mim tida como inteligente, culta, de sucesso, alguém de bom gosto para o que o social da época exigia, sempre de aspecto jovial como se o tempo não passasse por ela.

Uma "tigresa" blindada a tudo e por todos, era assim que eu a sentia.

De fato, voltando lá à minha percepção de criança, hoje sei que o tempo não nos alcança nunca quando ainda não precisamos dele.

Outrossim, quando lhe damos sinais da sua necessidade aprendemos com o tempo que somos nós que jamais o alcançaremos.

Mas, dia desses, depois dum acontecimento social eu a reencontrei pelas ruas.

Impecável, como sempre, lá estava ela saída das páginas da fama, todavia ainda na mesma mídia das "socialites" que vivem das histórias não esquecidas da "boca- pequena" mas que hoje já não pontuam os jornais como dantes.

Parei o carro ao meio fio para lhe cumprimentar, quando ela se achegou à janela, de sombrinha na mão, a tropeçar o salto fino nos mesmos paralelepípedos da rua antiga e ali a me pedir uma curta carona para casa.

Em poucos quarteirões trocamos algumas palavras sobre o mundo de hoje e imediatamente voltando ao tempo deduzi que talvez apenas uns quinze anos nos separam na cronologia da vida , isso aplaudindo os esforços da epidêmica plasticidade cirúrgica que tanto caricatura o presente passado.

De repente ela sentiu sede e eu lhe cedi meu resto de água da minha garrafinha pet que fervia dentro do carro a quarenta graus dum sol a pino.

Terminada sua deglutição sedenta- e sob meus olhos perplexos- ela abriu a janela e atirou a garrafa pet para fora do carro, cicatriz ecológica que ali ficará derretendo ao meio fio nos próximos quinhentos anos de calor infernal.

Aquele gesto a mim me caracterizou a figuração explícita do quanto o nosso mundo seria melhor não fossem as nossas crenças e as nossas falsas certezas quanto aos estereótipos que nos encantam pela vida...