A Zanga do meu avô

Um dia de domingo depois da missa, era dia de Procissão, estávamos todos prontos para sair, com os andores enfeitados, os rapazes com uma capa branca, com o Sagrado Coração bordado no peito, os homens com as suas opas vestidas, os senhores mais importantes, agarrados aos paus do palio e as crianças mais pequenas vestidas de anjinhos.

Era um dia de festa na aldeia, nas janelas estavam pessoas debruçadas, sobre as melhores e mais lindas colchas que tinham, que dobraram sobre os peitoris, com cestos cheios de pétalas de flores, que atirariam quando a Procissão passasse, pelas ruas atapetadas com rosmaninho e alecrim.

No momento em que se levantou o primeiro andor, ouvem-se estourar foguetes e toda a aquela gentinha emocionada, se aprontou para dar inicio à Procissão pelas ruas da aldeia. O padre é que não gostou dos foguetes, e irritado exclama:

- A PROCISSÃO JÁ NÃO SAI!!!

Fez-se um silêncio profundo na igreja, perante aquela atitude do padre Luís, a tristeza daqueles rostos era digna de pena, num misto de tristeza e muita raiva à mistura. Era como se a uma pessoa cheia de fome e depois de lhe terem posto uma iguaria à frente, de repente lhe tirassem o prato e o afastassem da mesa a pontapés. Então aquilo era trabalho que se fizesse? Fazia-se assim pouco de um povo devoto que se tinha atarefado com os preparativos da procissão na apanha do rosmaninho e alecrim, encher cestos de pétalas de flores, cotizarem-se para mandar vir a banda filarmónica da Boaldeia. Tantas despesas! Agora só por causa de uns foguetes, aquele comedor de hóstias emburrou, pondo e dispondo dos sentimentos dos seus paroquianos a seu belo prazer, pouco se importando com a tristeza e mágoa que provocou!?

No meio daqueles sussurros de descontentamento, ouve-se uma voz zangada, no fundo da igreja:

- Então merda p’ro padre e merda p’ra procissão! - Era a voz do meu avô João, que sem medir consequências nem o sagrado local onde estava, expressava assim o sentimento de toda aquela gente.

No adro, a coragem assomou ao peito daqueles despeitados, a ponto de alguns quererem mandar os foguetes direitos à sacristia. Muitas pragas e promessas de que o homem das saias, as haveria de pagar. Jaime o negociante de vinhos, prontificou-se a dar cem escudos para comprar mais foguetes. Outros mais o seguiram. Então é que foi lindo: Todo o santo dia, foi um ribombar de foguetaria, até de madrugada.

Nunca antes houvera uma festa assim, com tanto foguetório. Até o concerto que estava destinado a ser feito no largo da povoação, pela filarmónica, foi feito no adro, junto à residência do padre.

Embasbacado, eu reparei melhor no meu avô, via uma pessoa nova para mim. Habituado a vê-lo sentado à lareira no inverno, quase sempre calado, enquanto a tia Albertina colocava a assar uma maçã riscadinha para me dar. Agora via-o irritado e a ser porta-voz, de todas aquelas almas.

Confesso que apesar dos meus oito anos, eu também senti a dor daquela bofetada sem mãos, dada pelo padre e senti um certo orgulho ao saber que o autor daquele sacrilégio dito dentro da igreja, tinha sido o meu avô João

Depois deste episódio a que assisti, o avô João e a sua Albertina, (madrasta do meu pai) calcorreavam todos os domingos cinco quilómetros para assistirem à missa, em Sabugosa. E como nisto de zangas são para se levarem a sério, a zanga com o padre Luís durou três anos.

Lorde
Enviado por Lorde em 11/02/2013
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