LAPSO

Olhava para aquela menina toda vez que ela passava e lembrava, todas as vezes, do que tinha sido. Lembrava das brincadeiras, dos romancinhos, do caderno levado pregado no corpo, das brincadeiras quando voltava da escola, das tarefas que a mãe lhe mandava fazer, da vó que ralhava com ela, das tardes embaixo do pé de tamarindo, das amizades – algumas ficaram até hoje, mas poucos encontros já, pouquíssimos.

Lembrava da menina que sonhava que queria ser o que ela se tornou. Profissional respeitada, mãe amorosa, uma família feliz de fato, sem rancores, sem dores, sem grandes tribulações. Mesmo com a morte do marido, cedo ainda, daquela forma, a família se manteve íntegra e ela pôde ver todos os filhos de formarem, ganharem o mundo de uma maneira linda.

Olhava a menina pela janela entreaberta. Ela passava todos os dias, à mesma hora, Devia estar indo para a escola, por causa da camiseta e dos livros. Voltava já um pouco tarde, quase escurecendo, e trazia pela mão um menininho, uns dois ou três anos, e um saco que devia ser de pão. Todos os dias ela a esperava passar, na ida e na volta.

Quantos anos as separavam? 50?60?70? Não imaginava. A doença lhe trouxe uma dificuldade com números. Mais uma.

Sentada, eternamente sentada, ela avistava a menina, que vinha, que vinha, passava por baixo da janela, seguia. Duas perspectivas. Na ida e na volta. Ela abria um semisorriso quando a menininha sumia da vista. Isso todos os dias.

Sentada na sua cadeira de rodas, Julieta contemplava-se no espelho do tempo. Isso todos os dias. Duas doses.