A Tormenta
O homem olha pela janela enquanto as nuvens pretas escurecem o que até esse momento tinha sido um belo dia de sol. Os trovões retumbam no silêncio da tarde, e o vento agita com violência as folhas verdes das árvores. O temporal avança sobre o lugar, e o homem lhe sente a iminência. Porém, seus pensamentos estão muito longe dali. Está esperando que Rosa, sua mulher, chegue em casa. Desde a noite anterior, quando saiu sem lhe dizer para onde ia, não teve notícias dela. Ela não respondeu suas ligações, não entrou nas redes sociais, não estava na casa de sua mãe nem com alguma amiga. Ele sabia que ela não iria voltar, mas ainda guardava a esperança de vê-la entrar de novo pela porta.
Ele não sabia o que fazer. Preocupado, no fundo, não estava. Sabia que algum dia ela cansaria de tudo, que o que tinha acontecido era consequência de tantos meses de maus tratos, de palavras grossas, de humilhações. O que ele fazia com ela era, porém, algo inevitável. Era como a tormenta que se estava formando no céu: seu peito se enchia de tédio, de ódio e desamor, e não controlava mais sua boca. Sua mulher tinha sido sua companheira de muitos anos, juntos criaram dois belos filhos e passaram por muitas fases, umas boas, outras terríveis. Uma vez ela o achara na cama com a amiga. Em lugar de fazer escândalo, fechou a porta e saiu para jantar num restaurante. Quando voltou, trocou os lençóis, e deitou. Nunca disse uma palavra. Ele não soube nunca se isso mais o irritou ou lhe deu alívio. Ela sempre foi impassível.
Depois, quando os filhos foram embora, as coisas ficaram mais complicadas. Ele estava sem emprego, e seu orgulho ferido por ser mantido pela mulher aumentou dentro dele o ódio que sentia por ela. Chegou ao ponto de não aguentar comer com ela, pois seu rosto sempre sem expressão, seu olhar tranquilo e a forma como falava o irritavam. E começaram os maus tratos. Ao início ela não replicava nada. Ouvia os insultos em silêncio, e seu rosto unicamente demonstrava o sofrimento nos olhos, que brilhavam feridos. Depois, ela começou a perguntar o por quê de tanto ódio. -Se eu te aborreço tanto, então é melhor divorciar-nos! - disse ela um dia.
Ele não quis. Enquanto olhava as gotas de chuva que começavam a bater com força nas vidraças da janela, ele pensava no rosto triste de Rosa, ao pedir o divórcio. Ele não entendia. Não se entendia. Ele já tinha amado tanto essa moça de olhos escuros e cabelo castanho, que lhe dera dois belos filhos e tantos anos da sua vida! Mesmo quando a traiu, ele não pensou jamais em deixá-la. Mas agora era diferente. Seus sentimentos o controlavam, tudo o que tanto tempo guardara no coração, o orgulho, as dores da infância turbulenta, a imagem do pai batendo nele, gritando sua mãe... e ele que sempre renegara desse passado, que sempre dissera que nunca faria igual ao seu pai. Agora esse passado estava presente, e ele se comportava como outrora fizera seu velho.
Bela contradição! Um sorriso turvo apareceu no seu rosto, enquanto o olhar vagava pela paisagem açoitava pela chuva. A água enchia a rua, golpeando sem misericórdia as árvores, os carros estacionados, seu portão frouxo, as janelas que gemiam. A vida era como a tempestade, pensou ele, implacável. Mesmo que a gente corra, querendo fugir do que se é, chega o momento em que se cai diante da própria natureza, e chega o momento de se encarar, e se ver como se é, como sempre se foi.
Rosa, a pequena mulher, cada dia mais magra, mais silenciosa, que evitava estar muito tempo na mesma habitação que ele, que reclamava por ele gritá-la mesmo quando ele dependia dela economicamente. Finalmente tivera a coragem de deixá-lo, e ele não sabia o que fazer. Por um lado, o alívio. Não mais o inferno. As brigas, a violência que enchia seu peito e explodia em uma série de insultos sem motivo, causados por uma raiva profunda mas sem fundamentos claros. Afinal, pensando seriamente, o que ela tinha feito de ruim? Sua única culpa fora ter casado com ele um dia, fazia tanto tempo. Claro, ela não era perfeita, falava demais, ocupava demasiado tempo limpando a casa e vivia convidando as amigas para tomar café. Mas isso não era pecado capital. Talvez o problema fosse ele mesmo. Seu coração fora ferido seriamente quando criança, sua vida marcada pela violência que corria no seu sangue, que o fazia ferver. Essa violência que agora tinha como única vítima a sua mulher, e que fora aumentada pelo tédio e pelo desespero que lhe causava passar mais um dia sem arranjar emprego. Seus filhos não compreendiam muito da situação, e cada um deles tomara um partido diferente. Sua filha falava para sua mãe aguentar mais um pouco, preservar a família, a unidade, tudo o que em seu momento a mesma Rosa tinha ensinado a seus filhos como valores fundamentais da vida. Seu filho, mais rebelde, não entendia como sua mãe não tinha dado pé na bunda do pai, que não tinha nenhum direito de tratá-la desse jeito. Ele mesmo não falava muito com eles, nunca fora o tipo de pai que compartilhava a vida com os filhos.
O som da chuva caindo o acalmava. Parecia que era capaz de penetrar no seu mais profundo ser, e lavar-lhe a alma atormentada. Ele cansou, então, de olhar a chuva gris e violenta, e com um passo, deu de costas para a janela. Rosa tinha tomado sua decisão. Agora o único que ele podia fazer era esperar a tormenta parar.