Depois da tempestade...

Depois da tempestade...

Depois de dois anos de sofrimento, Joana pode relaxar o corpo e a mente. Seu falecido marido deixou-a sem pensão e nenhum bem. A única herança foram os oito filhos: Marcelo, Marcio, Joyce, João, Sergio, Julia, Mauro e Mauricio. O mais velho tinha dezesseis anos e sete meses. A vida foi muito ingrata para ela. Como uma leoa, e com muita hombridade fez o impossível, mesmo assim e ainda com a ajuda dos vizinhos, passaram muitas privações. Certo dia um amigo, depois de muito pedir, conseguiu emprega-los na concessionária em que trabalhava: os dois rapazes mais velhos e a moça. Joana estava feliz, afinal, não precisava mais ver seus filhos passarem tanta necessidade. A miséria de antes deixara lugar para dias bem melhores.

Ano de 1966. A Jovem Guarda estava no auge. E em novembro, no programa Cassino do Chacrinha era coroado o Rei da Música, Roberto Carlos. Ele conseguia mexer com a cabeça dos adolescentes, principalmente das meninas.

Joyce, a filha de Joana que mal começara a trabalhar, num arroubo da juventude, gastou todo o salário na compra de uma vitrola portátil e na coleção de discos do Rei. Quando chegou em casa com os pacotes na mão, toda feliz, a mãe se mostrou muito chateada. Não era hora de fazer uma loucura dessas. Afinal até pouco tempo, a fome se fazia presente em suas vidas. Mas a menina estava na fase adolescente e era louca pelo cantor de tal maneira que a parede do seu quarto não tinha um lugarzinho sem que houvesse um pôster dele. E resolveu passar o natal escutando o seu grande ídolo e amor. A vitrola não parava, só tocava no último volume, e Joyce cantava junto. Os vizinhos também gostavam de ouvir, todos amavam o cantor. Um dia tocava Roberto Carlos e no outro também!

Era noite de sexta-feira, e todos já dormiam. Um barraco pequeno, porém era igual coração de mãe, cabia todo mundo. A maioria dos meninos dormia na sala, Marcelo armava sua cama bem perto da porta da cozinha e percebeu que ela estava mexendo. Esta, já não tinha muita segurança, era fechada com uma tramela, e se não fosse o botijão de gás colocado atrás para reforçá-la, seria muito fácil conseguir arrombá-la. E como todos sabiam disso, ficavam sempre atentos a qualquer barulho. Ele levantou e ficou olhando para ver o que estava acontecendo, não demorou em descobrir que alguém a estava forçando. Acordou os irmãos, pegou um cabo de vassoura que estava perto e começou a falar com voz bem grossa e alta, querendo assustar quem ali estivesse. O medo tomava conta, mas não podia demonstrá-lo naquela hora. Era o mais velho dos irmãos e tinha que mostrar pra eles que era valente, já que sempre dizia que homem não sente medo...

— Aí, estou com uma arma na mão, se tentar entrar eu atiro.

Lógico que não tinha arma nenhuma, mas quem estava lá fora não sabia disso. E de repente o silêncio se fez ouvir... Os meninos estavam assustados, mas, não quiseram acordar a mãe, que com os gritos, não teve jeito, levantou assustada, e quando os filhos contaram o acontecido, não acreditou, ficou perplexa com tudo e disse:

— Pai do céu! O que querem roubar aqui? — Estava indignada com aquela situação, e com medo. Mandou que os meninos ajudassem a colocar mais coisas atrás da porta, com o intuito de que, se o ladrão voltasse, o barulho acordaria a todos, e ficaria mais difícil para ele conseguir entrar. Besteira, porque no resto da noite ninguém mais conseguiu dormir, tanto foi a preocupação. Na semana seguinte, logo na segunda-feira, Joana encontrou uma vizinha na quitanda e comentou o acontecido.

— Oi Carmem, tudo bem? Nem te conto o que aconteceu! De sexta pra sábado forçaram a minha porta, foi o maior susto! Sorte é que Marcelo viu, fez uma gritaria danada e aí quem estava lá fora, foi embora — e a vizinha um tanto apreensiva lhe disse.

— Que bom te encontrar e ficar sabendo disso, porque nesta madrugada vimos uma pessoa andando no telhado do seu barraco. Acho que viu a gente, ela desceu e sumiu. Depois não vimos mais!

— Não me diga isso menina! Tem certeza? — perguntou assustada.

— Lógico, o Jorge estava comigo, ele também viu! Só não falei mais cedo porque tive que sair e só agora estou voltando, ia passar na sua casa. Bom que te encontrei aqui — respondeu a vizinha certa do que estava falando.

Joana ficou muito mais preocupada. Despediu-se da amiga e voltou para casa, na intenção de contar aos filhos. Esperou que os meninos chegassem do trabalho, e com todos reunidos disse:

— Estou apavorada, já tentaram arrombar a nossa porta na semana passada! Então, hoje encontrei a Carmem, uma vizinha dali do outro lado do valão. E ela disse que alguém estava em cima do nosso telhado noite passada, eu até ouvi um barulho sim, mas pensei que fossem os gatos!

Os garotos ficaram preocupados, mas tentaram tranquilizá-la, dizendo:

— Se preocupa não, mãe; quem tiver tentando, vai acabar desistindo. — Os meninos se entreolharam, e pensaram que o negócio não era tão simples assim. Sem falar nada com ela, resolveram juntar os amigos da rua, e coloca-lhes a par dos acontecimentos.

— Aí rapaziada, é o seguinte, tem alguém rondando o nosso barraco, já forçaram a porta na sexta-feira, e tentaram entrar pelo telhado essa noite, foi uma vizinha que viu! Lá em casa tá todo mundo apavorado! Temos que fazer alguma coisa, nunca teve assalto aqui, a gente fica com portas e janelas abertas e nunca aconteceu nada disso. Temos que descobrir quem é esse ladrão e o que ele quer. Vai que ele consegue entrar, quando só a minha mãe e os meus irmãos estiverem em casa!

— Bicho, vamos caçar o cara, se essa moda pega, vai ter gente toda hora tentando roubar — respondeu um dos amigos. E deram um grito de guerra! Os filhos de Joana eram populares no bairro e juntaram uma turma grande, eram todos muito jovens, numa faixa de dezesseis, dezessete anos. Para eles tudo era motivo de se firmarem como homens. Ficaram animados, nunca acontecia nada naquele bairro, isso para eles era uma festa. Estavam revoltados, e com razão, pois ali todos tinham uma vida sofrida, e era muita sacanagem que aparecesse um ladrão para roubar-lhes alguma coisa. E combinaram uma emboscada para o suposto assaltante. Dividiram-se em grupo de quatro, e combinaram de ficar em pontos estratégicos.

Cada noite ficava um de plantão. Não desistiram, até que no quarto dia, em meio a uma gritaria, cercaram o dito cujo e conseguiram pegá-lo. O bandido estava tentando de novo arrombar a porta do barraco de Joana. Ele ainda tentou fugir, mas os rapazes não deram mole, juntaram o homem e deram uma surra nele.

— Não me batam mais, por favor, eu conto tudo! — murmurou desesperado e já sem forças até para falar.

— Então desembucha logo senão você não vai sair daqui vivo, seu ladrãozinho filho da mãe! — disse com muita raiva, Marcio, o filho de Joana.

— O que você queria pegar na minha casa? — gritou outro sem muita paciência.

— Vamos matar esse ladrão! — Ninguém sabe de onde veio o grito, mas naquele momento todos se calaram, não se ouvia a respiração de ninguém, apenas o soluçar do homem, que por um instante viu que sua sentença estava dada.

— Calma, assim não vai dar pra saber o que ele queria roubar. — Quebrou o silêncio alguém mais sensato.

O meliante vendo que a coisa estava indo para um caminho sem volta, começou a confessar:

— Eu só queria a vitrola e os discos do Roberto — falou com dificuldade, tremendo de dor e de medo.

— Você quer o que não é seu? — gritou novamente um dos rapazes

— Não vou fazer mais, juro! — E chorando sem parar falou:

— Minha mulher foi embora com o meu melhor amigo, levou tudo que eu tinha, e estou sofrendo muito! Fiquei sem nada, minha vida perdeu o sentido, já tentei me matar, mas descobri que não tenho coragem, não quero morrer! Só fico bem quando escuto as músicas do Roberto. E fico lembrando aquela bandida! Nós ficávamos ouvindo os discos dele e nos amando. Não tenho vitrola, e quando passei aqui e ouvi, quis para mim, achei que ia ser fácil, só vi crianças na casa...

— Além de ladrão é corno. — Gritou um jovem querendo zoar o homem, todos riram muito.

Joana que trabalhava o dia inteiro, e dormia cedo, nem imaginava o que estava acontecendo. Uma vizinha tinha ido correndo buscá-la, pois muita gente não aprovava o que os meninos estavam fazendo. Quando chegou e viu o estado da criatura, morreu de pena. Correta como era, nunca apoiaria uma loucura daquelas. O homem estava todo machucado, ela deu um grito e disse:

– Para! O que vocês estão pensando? Não podem fazer isso. Já deram uma lição nele, agora deixem o homem ir embora. Diante daquele grito todos largaram o ladrão, que não perdeu tempo, fugiu mesmo não aguentando correr. De repente apareceram pai e mãe de tudo quanto é lado. Cada um dos amigos teve que prestar contas a eles que os levou para casa com um puxão de orelha.

Joana, por sua vez, muito irritada com a irresponsabilidade dos filhos, passou um sabão neles.

Voltando para casa encontraram a meninada acordada, todos queriam saber o que tinha acontecido. Os garotos, agora mais relaxados, contaram tudo em detalhes, e um deles, o mais engraçadinho, falou:

Maninha quase que você ficou sem o toca-discos e os discos do seu amorzinho! Hahaha...

Viu, ficou colocando a vitrola para tocar alto, olha no que deu, chamou atenção do homem, que pensou em se dar bem. Agora quero todo mundo na cama! — ordenou Joana.

Pelo menos, agora ninguém mais vai tentar roubar aqui — comentou um dos meninos.

Joyce, que não saberia ficar sem ouvir seu amado ídolo, estava feliz e até agradeceu aos irmãos. Além de tudo, onde conseguiria coragem para comprar novamente algo tão caro?

Que cara de pau, por que ele não fez igual a mim! Trabalhei muito e ainda ouvi a mãe falar o mês inteirinho, só por que comprei a vitrola! Se estivesse lá, até eu ia dar uns tapas nele. Abusado! — retrucou a garota.

Menina, até você! — reclamou a mãe, reprovando a filha.

Ah, é isso mesmo, pensa que é assim, só ir pegando o que é dos outros! Quer saber cansei, vou dormir que amanhã é dia de branco.

Conto publicado no livro FLUPP Pensa-43 novos autores

A FLUPP Pensa foi o processo formativo realizado nos meses anteriores à FLUPP - Festa Literária das UPPs. Entre março e julho de 2012, a FLUPP Pensa realizou 14 ações em diferentes comunidades da metrópole fluminense e mais duas na Academia de Polícia Militar, num processo de formação de novos leitores e autores. os novos autores selecionados foram publicados neste livro que conta com 43 textos. A FLUPP - Festa Literária Intenacional das UPPs - é um evento literário anual, cuja primeira edição foi realizada em novembro de 2012, no Morro dos Prazeres. Rio de Janeiro.

yoyo
Enviado por yoyo em 07/02/2013
Reeditado em 07/02/2013
Código do texto: T4127338
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