Vovozinha turbinada


   Dona Genoveva, uma senhorinha aparentando uns setenta anos, com seus cabelos branquinhos, mas bem escondidos sob uma coloração caju e presos em um rabo de cavalo, vestida com trajes esportivos, chegou à academia às 8h da manhã de uma segunda-feira ensolarada de primavera. Alguns alunos que àquela hora já estavam em seus aparelhos de musculação ou fazendo aeróbica orientados pelo professor Léo, olharam-na com curiosidade. Naturalmente todos tiveram o mesmo pensamento: “O que essa senhora está fazendo aqui?”
   A vovó dirigiu-se ao balcão da recepção, onde a funcionária com um sorriso simpático lhe perguntou:
    - Em que posso ajudar, senhora?
    - Gostaria de fazer minha matrícula.
    - Sua matrícula, senhora? Como assim?
   - Isso aqui não é uma academia? Então, quero me matricular aqui para fazer uns exercícios. – respondeu.
  - Senhora, não creio que esta academia seja adequada para seus exercícios. Aqui nós só temos alunos jovens. Acredito que nossos equipamentos e métodos não sejam específicos para idosos. – falou a funcionária com delicadeza.
  - Não estou vendo nenhum aviso estabelecendo idade limite. Cadê, onde está escrito que uma idosa não possa fazer exercícios aqui? – disse Dona Genoveva, em tom irritadiço.
   Os outros alunos distraíram-se de suas atividades, passaram a prestar atenção na conversa da vovó com a funcionária, alguns já caindo na gargalhada.
   A moça continuou seus argumentos:
   - Não, senhora. Não há avisos sobre limite de idade, mas é que...
   - É que, o quê? Você está me discriminando por eu ser idosa e isso é crime, sabia minha filha?
   - Perdoe-me, senhora, não estou discriminando, mas, é que acho que aqui o ritmo é puxado para alguém de sua idade, entende?
   - Não, não entendo. Quem sabe se é puxado ou não sou eu. Aliás, eu e meu médico, o Dr. Assis. Ele me garantiu que posso, posso não, eu devo fazer academia e eu quero fazer aqui.
   - Senhora, eu precisaria de uma declaração de seu médico confirmando que não há nenhum problema de saúde que a impeça de realizar atividades em nosso estabelecimento.
   - Sim, está certo. Eu tenho uma declaração aqui na bolsa, quer ver?
   - Por favor.
   A vovó tirou do interior da bolsa um envelope enorme e, de dentro dele, foi tirando papéis e papéis, laudos de vários tipos de exames: raio-X da coluna, dos joelhos, dos braços, do pulmão. Também tinha de eletrocardiograma, de eletroencefalograma, de hemograma, de outros “gramas”.
   - Onde está mesmo a declaração? – falou revirando o envelope. – Ah, achei! Aqui está. Pode ler aí, minha filha, estou apta a fazer musculação e qualquer outro exercício que vocês desenvolvem aqui.
   - Estou vendo que sua saúde está ótima, senhora. Mas, acho que seria necessário a senhora passar pela avaliação de um dos nossos especialistas. Temos Fisiologista, Ortopedista, Professor de Educação Física e há o Cardiologista que poderá confirmar esses laudos.
   - Menina, você quer que eu desista? Não vou desistir de jeito nenhum. Pode marcar aí a consulta com esses especialistas todos que eu venho.
   - Sim, senhora. Mas acho que a senhora deveria vir acompanhada de um filho ou de algum parente, para assistir às consultas e aos testes.
   - Que filho, minha filha? Eu não dependo dos filhos, não. Meus dois filhos moram longe: um mora nos Estados Unidos e o outro em Natal, no Rio Grande do Norte.
   - E seu marido?
   - Esse já partiu dessa pra melhor há muitos anos.
   - A senhora mora sozinha?!
  - Moro com meus cachorros: o Billy e o Tony. Também tenho uma empregada que dorme comigo de segunda a sexta-feira. No fim de semana ela vai para a casa dela que é lá em Caxias.
- Então nos fins de semana a senhora fica sozinha?
- Não. A Tereza, minha amiga, dorme em minha casa. Há anos ela vem ficar comigo. Aí, nós saímos, vamos ao cinema, ao baile, ao teatro. Às vezes, a gente sai só para jantar. Muitas vezes, outras amigas vêm para minha casa e jogamos cartas até tarde. Sou doida num joguinho de Buraco.
- Suas amigas são da sua idade?
- A Tereza tem setenta e cinco anos. A Vera e a Maria têm setenta e dois, e a Augusta já tem oitenta e dois anos. São meninas muito companheiras, animadas, nós nos divertimos bastante juntas.
   A funcionária da academia foi gostando de conversar com aquela vovó tão entusiasmada e foi dando corda para ela contar mais.
   - A senhora deve ser aposentada, não é?
  - Sou.Trabalhei durante 40 anos como funcionária dos Correios. Meu marido era do Banco do Brasil e me deixou uma pensão razoável. Meu filho Teodoro, o que mora nos Estados Unidos, está muito bem de vida e me manda uma boa mesada. Francisco, o de Natal, também sempre manda um dinheirinho para as minhas viagens.
   - A senhora viaja muito?
  - Ah, viajo muito! Eu adoro viajar. Já fui a Boston duas vezes visitar meu filho. Ele está há dez anos lá. Da última vez que fui vê-lo, fiquei dois meses e passeei bastante pelos Estados Unidos com ele, a nora e os netos. Meus netinhos são lindos: Hanna e Joe. Minha nora é americana, sabe? É uma boa esposa para meu filho.
  - Que bom! E mais onde a senhora já foi, além dos Estados Unidos?
  - Ih, minha filha, já rodei esse Brasil inteiro: conheço todas as capitais do Nordeste, as do Sul. Minas Gerais eu conheço como a palma da minha mão. Já fui ao Pará assistir ao Festival de Parintins. Não sei quantas vezes fui à Bahia. Eu gosto muito de Salvador.
  - Que legal!
  - No exterior já fui à Grécia, à Turquia, a Portugal, à Espanha, à Itália. A França ainda não conheço, mas ainda vou conhecer, se Deus quiser.
- Quando a senhora viaja, quem a acompanha?
- Vou sempre em grupo de amigos. Mas já viajei sozinha muitas vezes. Quando vou para Natal passar uma temporada com o Francisco, vou sozinha. Não tenho medo não, minha filha.
  - Então quer dizer que a senhora e suas amigas gostam de sair para dançar?
  - Gostamos muito. Dançar é uma maravilha! Faz bem ao corpo e à alma. No clube onde costumo ir há muitos idosos. Há frequentadores mais jovens também, mas tem mais idosos.
  - E que tipo de música vocês costumam dançar?
  - Dançamos de tudo: bolero, salsa, tango, samba. Até rock a gente dança, mas é o rock das antigas, como o do Elvis Presley, sabe? Elvis foi o maior dos meus ídolos. Adoro quando toca suas músicas no baile. É muito divertido!
  - Imagino.
  - Ah, é uma maravilha! Às vezes, o clube contrata uns rapazes para fazerem par conosco, porque há muito mais mulheres que homens. Eu escolho os mais novinhos. Tem uns meninos lá de vinte e poucos ou trinta e poucos anos, é desses que eu gosto. Eles conduzem melhor a gente na dança. Ah, de velha já basta eu, né? Ou você acha que vou dançar com homens da minha idade que nem se aguentam em pé e que ficam logo cansados? (Risos)
  - É mesmo?
  - É, minha filha. Os homens envelhecem mais rápido que nós, as mulheres. Também têm alguns que não se cuidam. Eles não gostam de médico, só procuram quando estão doentes. Não ligam para a aparência, não fazem nada para melhorar a boa forma. Aí ficam uns cacarecos, não é verdade?
  - A senhora tem razão.
  - Claro que tenho. Repare como existem mais viúvas do que viúvos. As mulheres são mais cuidadosas com a saúde, com a aparência, por isso vivem mais. Também falamos mais, não ficamos guardando as coisas dentro do peito. Os homens não, eles não gostam de falar, são trancados, guardam coisas, escondem as emoções. Eles têm orgulho de dizer que não choram. Que bobagem! Chorar faz bem. É por isso que eles têm infarto mais do que as mulheres. Mas até que atualmente temos visto homens se cuidando mais, porém, muitos ainda não se cuidam. Meu marido morreu de câncer de próstata porque nunca quis se cuidar. Quando descobriu, a doença já tinha tomado conta. Sofreu o coitado! Foram quase dois anos de muito sofrimento até morrer.
  - Os homens, de um modo geral, não gostam de fazer exame de próstata.
  - Pois é, não gostam. São uns tolos. Poderiam evitar a doença com um simples exame, mas são cabeça-dura, são machistas. Aí eles morrem mais cedo e a gente fica aí aproveitando a vida.
  - Pelo visto a senhora aproveita mesmo.
  - É claro que aproveito. Já cuidei dos filhos, já trabalhei bastante, já passei meus apertos quando era mais jovem. Agora quero é aproveitar o máximo do tempo que ainda me resta.
  - Com esse entusiasmo acho que a senhora vai viver cem anos.
  - Quem sabe disso é Deus, minha filha. Mas o que eu quero é viver o hoje da melhor maneira possível. Estou com saúde, tenho meu dinheirinho, minhas amigas, moro nessa cidade linda cheia de coisas boas para fazer, então, eu quero aproveitar.
  - A senhora nunca pensou em se casar de novo?
  - Casar de novo?! Não, não pensei nisso.
  - Mas não sente falta de um companheiro?
  - Às vezes sinto, mas prefiro ficar sozinha. Eu fui uma boa esposa para meu marido, cuidei muito bem dele até ele morrer. Agora quero cuidar só de mim. Se eu casasse de novo ia ter de cuidar de outro homem. Ah, chega! Já cuidei de três homens na minha vida.
  - Mas não aparecem pretendentes?
  - Aparecer, aparece, mas eu dispenso. Já falei que de velha basta eu. (Risos) Eu confesso que andei namorando algum tempo atrás. Primeiro foi com o Antonio, um senhor que conheci no clube. Ele era um bom sujeito, mas começou a querer me levar pra casa dele pra eu fazer sopinha pra ele, mingauzinho pra ele, bolo pra ele. Eu queria ser a namorada dele, não a cozinheira. Depois conheci o Túlio numa viagem à Bahia. Namorei com ele durante um ano, mas a distância acabou atrapalhando: ele nunca podia vir ao Rio, só eu ia a Salvador para encontrá-lo, aí fui cansando. Ele era um coroa muito bonito, deve ter arranjado outra logo. Resolvi que não quero mais namorar. Eu faço igual a vocês jovens: de vez em quando eu fico.
  - Me explica como é isso na sua idade?
  - Ora, é simples: vou ao baile, danço com algum senhor interessante, ele pede para me acompanhar até em casa, eu concordo. Quando chegamos na portaria do prédio trocamos uns beijinhos. Não é isso que é ficar, beijar sem ser namorado?
  - É mais ou menos isso.
  - Eu sei que vocês jovens não ficam só nos beijinhos, mas eu já passei da idade de fazer outras coisas.
  - Olha que não, hein?!
  - Não tenho mais esses arroubos, minha filha. A cabeça está em outras coisas e não no sexo. Quando somos jovens o sexo é uma das coisas mais importantes de nossa vida, com o passar dos anos ele já não tem tanta importância assim. É claro que há idosos que têm vida sexual ativa, mas boa parte deles já deixou isso para trás há muito tempo. Mas a gente é feliz, mesmo sem sexo, porque a gente encontra outras formas de prazer. Um dia vocês vão entender o que estou dizendo.
  Dona Genoveva deixou encantados a todos que prestavam atenção à conversa. A funcionária Patrícia estava simplesmente admirada com a disposição, a alegria e a sabedoria daquela senhora. O professor Léo, deu uma pausa na aula, dispensou os alunos para um descanso só para ficar perto e participar do assunto.
  - Quantos anos a senhora tem? Me desculpe perguntar. – disse Léo.
  - Eu vou fazer oitenta anos no dia 08 de março. Nasci no Dia Internacional da Mulher e eu tenho orgulho disso.
  - A senhora está de parabéns! Não parece ter essa idade. Além de ter uma cabeça ótima. – elogiou o professor.
  - Obrigada! Mas eu me cuido, filho. Não como carne vermelha há anos, lá em casa só entra peixe e frango. Nada de fritura, nada de embutidos. Como muita fruta, verduras e legumes; tomo um cálice de vinho todos os dias à hora do almoço; faço caminhadas três vezes por semana; bebo bastante água; vou regularmente ao médico; pratico ioga. Vou à igreja todos os domingos, porque também é importante cuidar do lado espiritual. Mas o que gosto mesmo é de dançar. Essa é que é a grande paixão da minha vida e muitos médicos dizem que é um santo remédio, principalmente para quem está na terceira idade. Eu também faço atividades que melhorem minha memória e raciocínio: faço palavras cruzadas, faço Sudoku, leio muito, jogo Paciência no computador, jogo Buraco com minhas amigas. Aprendi a acessar a Internet para me conectar com meus filhos e netos. Meu netinho Joe fala que sou a sua vovozinha virtual e a outra, que mora lá nos Estados Unidos, é a vovó real. Agora estou querendo entrar para essa academia para fazer exercícios de musculação. Foi meu médico quem me aconselhou, mas a mocinha aí, não está querendo aceitar minha matrícula.
  - Não é isso, senhora. Eu disse que a senhora teria de passar por uma avaliação de nossos especialistas. – disse a recepcionista.
   O professor Léo interveio:
   - Pode inscrever a senhora, Patrícia. Eu faço a avaliação dela e determino quais exercícios são adequados. Com os laudos que ela trouxe terei base para programar as séries apropriadas.
   A vovó ficou toda feliz com a determinação do professor:
   - Ah, meu filho, que bom! Eu poderia entrar para outra academia, mas eu gostei muito desse ambiente aqui: é tudo tão limpo, tão bonito, bem equipado, arejado. Além disso, eu gosto de estar no meio de pessoas mais jovens. Sei que tenho muita coisa para aprender com elas. Eu gosto de aprender. Também gosto de ver gente bonita, bem cuidada, sarada. Sei que não vou ficar mais assim, mas posso absorver um pouco da energia que só a juventude possui.
  - Então estamos combinados, não é? A Patrícia vai fazer sua ficha, marca a sua avaliação e a senhora começará a fazer musculação orientada por mim, senhora...? Como é mesmo seu nome? – indagou o professor.
  - Ah, meu nome é Genoveva, mas pode me chamar de Geninha. É assim que todos me chamam.
  - Sim, vovó Geninha. Posso chamá-la assim, de vovó?
  - Pode, meu filho. Você deve ter a idade de meu neto mais velho que mora em Natal, o Pedro. Ele está com vinte e cinco anos.
  - A senhora errou por pouco, eu tenho vinte e oito anos.
  - Considere-se meu neto, então.
   No dia seguinte a vovó Geninha voltou para fazer a avaliação. Dois dias depois começou a frequentar as sessões de musculação com o professor Léo. A princípio os outros alunos estranharam, mas, pouco a pouco, a vovó foi conquistando a todos. Sempre após o horário, os alunos ficavam em torno dela na cantina da academia para escutar suas histórias, suas aventuras pelo mundo nas viagens que fez. Ela contava sobre os bailes, sobre as peças de teatro que assistia, sobre os livros que lia. Vovó Geninha passou a ser uma espécie de Guru para aqueles jovens que sempre lhe pediam um conselho, uma dica sobre qualquer assunto, fosse profissional ou pessoal. As meninas desabafavam com ela, contavam sobre suas paixões e decepções com os amores, enfim, ela era a amiga, a conselheira, o exemplo para os frequentadores da academia.
   Com total dedicação e disciplina, vovó Geninha ganhou massa muscular em pouco tempo e seus jovens colegas passaram a chamá-la carinhosamente de Vovozinha Turbinada. É claro que não ficou com o corpo definido como o deles, nem com barriga de tanquinho, mas seus músculos de oito décadas se fortaleceram. Ela estava com mais energia do que nunca, com mais disposição e com muito mais preparo para passar noites rodopiando no salão de seu clube preferido dançando ao som de Elvis Presley.












 


Jorgenete Pereira Coelho
Enviado por Jorgenete Pereira Coelho em 06/02/2013
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