A herança de Sinhana
Quando Sinhaninha se casou, lá pelos idos de 1945, seu marido construiu casa nova com jardim, pomar e bica d’água. Não era uma casa grande e, apesar de não ser luxuosa, era bastante confortável para os padrões da época. Tinha porão e o assoalho com as tábuas de ipê e amarelinho alternando-se, davam um bonito colorido de faixas claras e escuras, em harmonioso contraste, que encantava os visitantes. Contíguo ao quarto do casal, como era costume, tinha um pequeno cômodo reservado aos bebês que certamente viriam. Esse quartinho mantinha a privacidade do casal e facilitava o atendimento aos cuidados que toda criança recém-nascida dispensa.
Entretanto muitos anos se passaram, e os bebês não vieram. Sinhaninha virou Sinhana e a frustração e amargura pela sequidão do casal só fez se acentuar. No início, eles acharam que era normal demorar um pouquinho, mas, depois, como a situação não se resolvia, buscaram ajuda. Primeiro, com as matriarcas da família, que receitaram algumas infusões de ervas, banhos e benzições, mas sem resultados. Depois, procuraram a medicina, porém esta, no estágio em que se encontrava, não teve muito que fazer. O remédio foi entregar às mãos de Deus e aguardar sua misericórdia. Entretanto parece que Ele, em seus desígnios, já havia decidido que essa graça o casal não alcançaria.
Sinhana, então, recolheu-se ao seu infortúnio. Quando ficou viúva, a idade já lhe impunha sinais de cansaço e traços de senilidade. Contudo ela mostrou-se uma mulher de fibra e assumiu o controle dos negócios da fazenda com mão de ferro. Coordenava o trabalho da peonada, comprava e vendia as boiadas com a desenvoltura de experimentados boiadeiros — coisa que ela aprendeu com o marido.
O Banco da Lavoura, com agência na Rua do Comércio, era o depositário de sua conta-corrente. Quando ela chegava, Seu Alcides, o Gerente, vinha recebê-la na porta, e ela, com seu traje sisudo, acompanhava-o arrastando as chinelas de couro cru, que sempre usava, atraindo para si os olhares respeitosos dos clientes habituais.
Certa ocasião, D. Sinhana vendeu uma grande boiada e, como o comprador era desconhecido, exigiu o pagamento em espécie. O homem relutou, mas acabou compreendendo as razões da vendedora e, na data combinada, compareceu com uma mala cheinha de dinheiro — notas de cem cruzeiros, novinhas em folha, que ele precisou ir buscar no Banco do Brasil, porque os outros bancos não dispunham a pronta entrega, de tamanha fortuna. D. Sinhana pegou a mala e, por falta de local mais seguro, escondeu-a no quartinho de bebê que, agora se havia transformado em um quarto de guardados, trancado a chave, ao qual só ela tinha acesso, para posteriormente leva-la ao banco.
Passadas algumas semanas, a fazendeira fez outro negócio. Dessa feita, comprara uma garrotada e, quando ela foi ao banco buscar o dinheiro, Seu Alcides recebeu-a com a gentileza de sempre, mas, ao solicitar a quantia, ele se desculpou e informou-a de que em sua conta não havia fundos para aquele saque, todavia o banco estava à disposição, para lhe fazer um empréstimo do valor que faltava.
D. Sinhana não concordou e protestou, dizendo que o dinheiro estava lá, pois ela mesma o trouxera! O homem tentou acalmá-la, dizendo que iria verificar todos os livros da contabilidade para localizar um possível erro de anotação. Que ela voltasse no dia seguinte. Certamente, a falha seria localizada, corrigida e ela poderia levar o dinheiro. Assim ela fez, e no outro dia, minutos antes de o banco abrir, a mulher já estava na porta, abrigada do Sol sob um guarda-chuva preto. Seu Alcides foi cortês, tratando-a com toda a deferência, mas também foi incisivo: o alegado depósito não constava em nenhum livro, portanto não fora efetuado. A então setuagenária D. Sinhana espumou de raiva! Acusou a instituição bancaria de roubo e Seu Alcides de ladrão.
Por não ter a quem recorrer, Sinhana procurou o sobrinho mais velho, filho de sua irmã, que ela considerava como seu próprio filho, para ir ao banco e resolver o problema. Achava que, por ser homem e mais esclarecido, o sobrinho pudesse argumentar com Seu Alcides e fazer o respectivo saque. Contudo o Gerente foi irredutível: Sem os registros nos livros da contabilidade e sem o recibo de depósito, ele não podia fazer nada!
A briga perdurou por mais de 10 anos. Foram muitas as vezes que D. Sinhana foi ao Banco da Lavoura, reclamar sua fortuna. O sobrinho, então, perdeu a conta das vezes que conversou com o Gerente e concordava com ele que sem registro e sem recibo, não haveria o que fazer. É verdade que ele até consultou um advogado e que este lhe aconselhara a dar o caso por perdido. Qualquer juiz iria decidir a favor do banco, por absoluta falta de documentos comprobatórios. O tempo passou e D. Sinhana nunca aceitou o fato de não ter feito aquele depósito.
Anos mais tarde, quando a fazendeira faleceu, por não ter descendentes, sua herança ficou para a irmã e os sobrinhos. Os herdeiros tomaram posse da fazenda e das criações: porcos, galinhas e o gado. A casa, por respeito, eles mantiveram fechada por um longo período. Certo dia, porém, a irmã de Sinhana resolveu fazer uma limpeza em seu interior e deu com uma mala, escondida no quartinho de bebê. Ao abri-la, ficou surpresa, por verificar que estava cheia de dinheiro!
O sobrinho ainda tomou de algumas notas e foi ao banco, que já não era mais o da Lavoura, como nos velhos tempos, mas uma instituição maior, com recursos modernos. O Gerente que o atendeu examinou as cédulas e, balançando a cabeça, sentenciou: São de Cruzeiro! A moeda do País, agora, é o Real! Isso é apenas papel velho, não vale nada!