Uma noite de natal inesquecível
Sou um homem já experiente, maduro nos meus 75 anos, e insaciável pela arte de viver. Depois de muitos anos de lida urbana, onde fiz de tudo um pouco, hoje professor aposentado, moro em sítio a alguns quilômetros da cidade. Um lugar de paz e sossego, embora de muito trabalho. Meu paraíso aqui na terra.
Tenho quatro filhos que regularmente me visitam, vêm nos fins de semana, dormem aqui, tem acomodações para todos. Tenho também um punhado de netos, que enchem a casa de vida, de algazarra e de travessuras quando chegam. Não me importo, deixo a preocupação com os pais deles. Se é que se preocupam.
Me viuvei a uns dez anos. Foram momentos difíceis. Por muitas vezes desejei morrer também. Afinal, ela era minha companheira inseparável a mais de cinquenta anos. Mas me agarrei nas teias da vida sobrevivi, e hoje insisto numa vida solitária e porque não dizer, feliz. Se aprende a ser feliz sozinho, a verdade é essa. Claro, aquele vazio nunca mais será preenchido, mas afinal de contas eu existo. Preciso entender isso e cuidar de mim do melhor jeito que posso.
Meus filhos são pessoas do bem, são presentes, atenciosos, e isso me fortalece muito. Me deram um punhado de netos, me trazendo a certeza de ter feito a coisa certa ao optar pela vida, quando minha esposa faleceu. Não uma vida moribunda taciturna e melancólica esperando a hora de morrer, mas uma vida aberta, alegre. Sim eu ainda tinha uma longa vida a viver. E decidi que seria de boa qualidade. Por mim, pelos meus filhos, noras e genros e netos, pelos amigos e principalmente pela memória de minha eterna amada que foi para junto de Deus antes de mim.
Passado um tempo após ficar viúvo, eu contrai um casal para me ajudar na lida do sítio. Eram duas pessoas maduras, mas muito mais jovens que eu. Casal simpático, recomendados por amigos de confiança e então contratei os dois, que foram morar em uma casa distante uns quinhentos metros da minha, pouco mais. Eles, o oposto de mim, não tinham filhos. Tiveram duas meninas, mas faleceram em um acidente a muitos anos trás, numa história que para eles era muito difícil e dolorosa de se relembrar. Falamos sobre esse assunto apenas uma vez, logo que os conheci, então optei por respeitar seus sentimentos e nunca toquei no assunto. Percebi que eles se sentiam mais confortáveis assim.
E nossa convivência no sítio era diária. Eles se mostravam muito trabalhadores, presentes a todo o momento, nunca tivemos um único momento de desentendimentos ou atritos. Se tornaram meus amigos e companheiros no sítio, até porque eu morava sozinho, meus filhos só apareciam em alguns fins de semana. Os dois eram minha companhia.
O tempo foi passando e aquele casal se tornou parte de mim, de minha vida. Contava com eles para tudo. Ele a todo tempo brincalhão bem humorado, era um homem alto e forte, de uma força descomunal, carregava sozinho peças madeiras ou outras ferramentas que eu jamais me atrevia a fazê-lo. Excelente trabalhador e amigo, sempre disposto a ajudar em tudo. Ele nas lidas das roças, trato dos animais e ordenha, cuidados com as hortas, enquanto ela se ocupava no cuidado com a casa, jardim e onde mais precisasse dela. Mulher de jeito rude e matuto, quase analfabeta, mas de uma sabedoria invejável. Tal qual o marido, era uma pessoa bem humorada, pronta para a lida a todo o momento.
Essa convivência nos aproximou com amigos, nos fez companheiros inseparáveis. Quando meus filhos chegavam, logo perguntavam por eles: como estavam, etc. As crianças também os adoravam. E assim a vida transcorria com naturalidade e com os muitos afazerem que um sítio requer.
Numa manhã chuvosa, eu estava na cozinha saboreando café, lendo um livro, tendo um rádio portátil sobre a mesa, ligado em som baixo, quando fui chamado pela caseira, que aos gritos me chamava a atenção, pedido socorro. Seu marido fora mordido por uma cobra, ao pegar uma lenha para botar no fogo. Corri até lá, me deparando com ele segurando a mão direita, com feições de dor intensa. Mais que de pressa, ajudei-o a se locomover até o carro, que ficava na garagem coberta, ao lado de minha casa. Correríamos para a cidade, em busca de socorro.
Eu fui pego de surpresa, não sabia o que fazer. Uns dizia que se deve fazer um torniquete, outros que não, outros ainda diziam que deveria provocar sangramento no local, afim de expelir o veneno. Mas fizemos apenas um torniquete no braço, com a intenção de evitar a circulação do veneno pelo corpo inteiro e saímos em disparada rumo ao hospital.
A distancia não era muita, apenas trinta quilômetros. Mas fora a viagem mais longa que já fiz em toda minha vida. Chegando ao hospital, ele estava com a mão absurdamente inchada, entre sóbrio e delirando, expelindo uma saliva espumosa, esbranquiçada, estranha. A mulher não se continha de desespero, percebia nela a disposição em lhe dar a própria vida se fosse possível.
O atendimento muito rápido, os médicos e enfermeiros não perderem tempo, mas infelizmente nosso amigo veio a falecer umas poucas horas depois. Teve uma parada cardíaca e mesmo atentos, os médicos não conseguiram reverter o quadro. Segundo nos informou posteriormente, o veneno foi injetado em uma veia importante, comprometendo seriamente o paciente.
Foram dias difíceis para mim, que perdi um amigo, e para ela que perdeu um companheiro de uma vida. Meus filhos foram solidários, os familiares do casal também. Mas essas perdas provocam um estrago imenso na alma da gente. Para ela, muito mais, pois tinha nele seu apoio, sua vida, sua existência, por assim dizer.
Alguns familiares dela tentou convencê-la a ir morar com eles, ela tinha irmãos em outra cidade, distante uns cem quilômetros apenas. Ela chegou a considerar a hipótese, talvez fosse mesmo melhor se mudar, ir para outras paradas, distante de meu sítio e tentar esquecer o que vivenciou, continuar a vida de forma diferente. Eu respeitei a dor dela, deixei que administrasse sua vida, sua perda. Que tomasse a decisão que melhor lhe fosse.
Para mim, a perda foi grande, além do mais perdi um excelente trabalhador. Tinha de contratar outro, havia trabalho demais e eu não conseguia fazê-lo sozinho. Passado um mês aproximadamente, ela me procurou, disse que queria conversar sobre a sua permanência no sítio. Sim, eu estava disposto a ouvir o que minha amiga tinha a dizer.
Ela então perguntou se eu me incomodaria de ela continuar trabalhando para mim. Disse que considerou vários convites de familiares dela e dele, mas preferiria viver a sua vida independente, como sempre foi.
Claro, concordei de imediato, afinal ela sempre fora uma excelente trabalhadora, sempre pronta para a lida, e acima de tudo a minha amiga. Mas havia um problema: eu precisava da ajuda de um trabalhador para as lidas de campo. Ela então disse que um sobrinho seu, de uns vinte e cinco anos de idade estaria disposto a trabalhar, e se eu concordasse eles dividiriam a mesma casa onde ela já morava a anos.
Concordei em conhecê-lo, para depois decidir se o contrataria ou não, e dois dias depois estávamos conversando. Na verdade ele não me era exatamente estranho, eu já o vira antes, quando em visita aos tios. Conversamos bastante e ele me pareceu ideal e então o contratei. E dentro das limitações esperadas, a vida foi começando a normalizar, entrar nos eixos.
Passados três anos, estávamos tocando a vida, a rotina restabelecera. O rapaz era mesmo bom trabalhador, sempre pronto para a lida, responsável e cuidadoso. Quase todos os fins de semana ele se aprontava, montava na sua moto e ia para a casa dos pais, ou se divertir na cidade, como fazem os moços de sua idade.
Na véspera do natal do ano passado, recebi a visita dos filhos, vieram todos cheios de dedos, tentando dizer que não passaríamos o natal todos juntos, como de costume, pois estavam desejosos de uma viagem em família. Iriam todos para um mesmo lugar, seria uma noite muito especial em um balneário à beira-mar, distante de nossa região.
Queriam saber se eu ficaria bem, ou se desejava ir com eles. Respondi que ficassem à vontade, fizessem seus passeios, eu iria ficar bem, não desejava empreender essa viagem. De verdade, eu preferi ficar. O sítio é calmo, silencioso, é meu pedaço de sossego.
Mas no fundo aquela decisão de meus filhos me surpreendeu um pouco. Desde que nasceu o primeiro, eu nunca passara o natal sem eles, nem antes nem depois de a mãe deles falecer. Como seria uma noite de natal sozinho, no silencio de meu canto? Por momentos me preocupou. Será que me sentirei angustiado, deprimido? Ou será que “tirarei de letra”? Eram perguntas cujas respostas eu as desconhecia. Só as saberia na noite do dia 24 de dezembro. Mas faltam ainda alguns dias e eu nunca fui de sofrer por antecipação, não seria agora a primeira vez.
No fim de semana que antecedeu o natal, meus filhos vieram todos para casa, ficaram sábado e domingo comigo, na costumeira algazarra que eles faziam. Os netos, claro, não deixava nada passar desapercebido. Na saída, me deram presentes de natal, eu os retribuí, pois me prepara antes, sabia que eles passariam esse fim de semana em comigo. Me lembrei de uma lembrancinha para cada presente. Foi uma noite de natal antecipada. No domingo à tarde todos se foram, deixando um silêncio ensurdecedor em seus lugares. Eu sabia que só voltaria a vê-los dentro de uns quinze ou vinte dias, ou mais, já no ano novo.
Na sexta-feira que antecedeu o natal, a minha amiga caseira disse que o sobrinho iria para a casa de seus familiares. Ela ficaria sozinha. Menos mal, eu pensei. Afinal eu não ficaria absolutamente sozinho, ela estaria por perto. Propus então que jantássemos juntos a ceia de natal, no que ela concordou. Preparou uma lista de compras e pediu-me providenciar, no que prontamente atendi, indo à cidade adquirir. Claro, comprei-lhe um presente. Um rádio, ela reclamava que o seu começara a falhar, deixando-a sem as músicas prediletas quando estava em casa.
Para mim era um momento diferente. Sobressaltado com a ausência dos filho, era uma coisa nova para mim. Tinha momentos de apreensão, outros de expectativa, outros ainda com vontade de parar tudo e me isolar, me recolher.
Mas eu contava com a presença de minha amiga, ela também experimentava momentos parecidos com os meus.
Na noite de natal, preparamos juntos a mesa. A mesma da grande varanda da casa, onde por infinitas vezes estivera apinhada de pessoas. Dessa vez éramos apenas dois. Duas pessoas amigas. Mais dois cães labrador de estimação, nossas eternas companhia em todo canto do sítio onde eu fosse, lá estavam eles incansavelmente e com olhar sorridente.
Preparada a mesa, por volta de dez e meia da noite, tomei banho, me vesti. Quando voltei não a vi. Ela havia ido na sua casa. Logo voltava, também estava em traje de gala, na sua simplicidade de sempre, porém de roupas limpas, cabelos bem penteados e maquiada a seu modo, sem nenhuma maestria.
Sentamos, servi um vinho, no que ela aceitou e em silêncio começamos a tomar. Parece que cada um, ao seu modo, estava em um labirinto tentando se encontrar, se encaixar naquele momento, naquela noite de natal.
Então tomamos toda a garrafa de vinho, entre silenciosos e conversando banalidades, ou lembrando da família, de nossos amores que já partiram. A noite ia transcorrendo em paz. Sim, uma paz silenciosa, pura, verdadeira.
Bem próximo da meia noite, me levantei, fui aos meus aposentos e peguei o seu presente. Entreguei-o, ela meio que encabulada e feliz o recebeu, me agradeceu. Disse que também me comprara algo. E me entregou um embrulho, que ao abrir vi uma camisa de mangas longas, de bom gosto. Agradeci.
Então lhe pedi permissão para dar um abraço. E abracei aquela mulher. E foi um dos melhores abraços dos últimos anos. Eu sentia amizade. Eu doava amizade. Não com sentido homem/mulher, mas entre duas pessoas que se amam verdadeiramente, como profundos amigos. Sim, eu percebi o quanto ela me era importante, o quanto a amava. O quanto amava a minha amiga. E percebi em seu gesto o mesmo sentimento. Éramos os melhores amigos do mundo, naquela noite de natal. E isso nos bastava. Isso nos completavam, nos faziam inteiros.
Naquela noite, em muitos anos, me senti verdadeiramente um homem feliz. Não porque tivesse em mente uma mulher com que pudesse me relacionar, talvez ir para a cama com ela. Isso não. Meus propósitos, de coração em paz, eram e serão os de nunca mais me relacionar afetivamente nem me deitar com outra mulher.
Eu estava com uma amiga. Uma pessoa que como eu, estava sozinha numa noite de natal e também já amargara perda importante. Assim como eu, por momento em minha vida pensei não mais valer a pena viver. Desistir, sucumbir me entregando à dor seria o mais sensato a fazer. Eu, que por momentos, cheguei a questionar os atos de Deus, mas depois me recompus envergonhado, pedindo perdão. Eu que a alguns anos atrás, jamais imaginara viver momento de paz novamente. E aqui estou eu, na companhia, posso dizer, nos dias de hoje, a melhor amiga do mundo!
Nós dois vivenciamos um autêntico natal, comemorando a vida, comemorando a amizade, comemorando o aniversário do maior Homem do mundo! Eu sabia, ela transmitia com a voz, com a sua presença, que também me tinha como um amigo.
Mais uma vez, Deus estava certo. Ainda me estava reservado grandes momentos, como nesta noite de natal, na companhia de uma pessoa simplesmente fantástica! Não poderia ter sido diferente. Talvez se meus filhos estivessem por aqui hoje, teria sido uma noite feliz, na comunhão familiar, mas seriamos privados desse momento maravilhoso que experimentamos juntos. Só nós dois.
No final do ano passado, eu consegui viver feliz intensamente uma noite de natal, na companhia de uma mulher maravilhosa! Uma amiga para todo o sempre.
Muito obrigado por essa noite, minha cara! De coração, posso afirmar: EU TE AMO, MINHA AMIGA QUERIDA!