Primeira viagem

Dizem que você só conhece uma pessoa quando viaja com ela.

Trilha de suspense.

Narrador tão assustador quanto a trilha de suspense.

- Um casal, com poucos meses de namoro, resolveu viajar para uma ilha deserta, ficar na “choupana” de um amigo. Ele, o namorado, resolveu fazer um diario da viagem, todos os dias no fim da noite gravar uma espécie de documentário pra registrar a primeira viagem deles como casal e um dia reproduzir no casamento, mostrar para os amigos, filhos, netos, etc.

O que segue abaixo são fortes imagens do que acontece quando você viaja com quem acha que conhece.

Primeiro dia de viagem, ele e ela estão em frente à câmera. Os dois sorrindo, felizes por estarem juntos.

Para a câmera.

- Oi eu sou o Anderson.

- Oi eu sou a Clara.

- E esse é o nosso diário de viagem, resolvemos fazer ele para registrar a nossa primeira viagem juntos, estamos na casa de um amigo numa praia paradisíaca, numa ilha deserta.

- Parece que estamos na ilha de Lost.

- hahahaha... engraçadona. Temos a ilha só pra nós. A ilha é nossa!

- Nossa e do urso que está lá fora.

Ele olha para ela e ri.

- Está chovendo, mas segundo a previsão do tempo amanhã vai dar sol.

- Isso. Ta com cara mesmo. É chuva de verão.

- Agora vamos descansar porque foi uma longa viagem.

- Foi longa porque ele se perdeu e não quis parar para pedir informação.

Vira para ela.

- Eu não me perdi Clara, peguei o caminho mais longo para ficarmos mais tempo juntos.

- eu sei amor, to brincando.

Silencio. Volta para a câmera.

- Como eu sou um cara prevenido e sabia que em algum dia ia chover trouxe jogos, baralho, domino, xadrez, quite praia dia de chuva.

- Ih já não basta perder na cidade, quer perder aqui também.

- Coitada. Agora vamos desligar e aproveitar que não podemos sair e brincar aqui dentro. E eu vou mostrar pra você como seu namorado é bom.

Os dois se beijam apaixonadamente. Ele desliga a câmera.

Segundo dia de viagem, os dois novamente em frente à câmera.

Para a câmera.

- Opa aqui é Anderson.

- E aqui a Clara.

- Segundo dia de viagem.

- E a chuva continua.

- Continua, mas estamos nos divertindo mesmo assim.

- É.

Silencio. Ele para de olhar para câmera e olha para ela.

- Estamos mesmo.

- Foi isso que eu disse.

Ele balança a cabeça.

- Isso tudo é muito romântico. O lugar, o ambiente, a casa.

- A chuva, os pernilongos, a goteira.

Ele olha para ela.

- Desculpa.

Silencio.

- É muito bom viajar, recomendo a todos fazer isso, pegar umas férias e ir para um lugar longe do trabalho, do transito, da internet...

- Do mercado, padaria, posto de gasolina. – irônica.

- Isso. – ele não pega a ironia dela. – esquecer dos problemas, do estresse...

- Do repelente.

Agora ele entende.

- Já estamos planejando o dia de amanhã. Pelo jeito amanhã o sol vai sair.

Mostra a janela. Da um trovão bem na hora.

- Enquanto ele não sai continuamos nos divertindo onde é coberto e debaixo dos cobertores.

Da uma piscadinha para câmera.

- Até porque não da pra fazer nada lá fora.

Silencio.

- Vamos desligar, voltamos amanhã, com marquinha de biquíni.

- Eu vou fazer top less.

- Oi?

- Só tem nós e o urso nesse lugar. Ele não vai dar em cima de mim.

- Engraçadona. Cambio desligo.

Dão um beijo, desligam a câmera.

Terceiro dia de viagem. Os dois em frente a câmera. Ele sorrindo. Ela não.

Para a câmera.

- Olha eu aqui de novo, Anderson.

Silencio.

Olha para ela.

- Amor.

Olha para ela.

- Eles já sabem quem eu sou.

- Clara.

- Oi, eu sou a Clara.

Ele volta a olhar para a câmera.

- Esse é o nosso diario de viagem, terceiro dia de viagem, num dos lugares mais lindos que eu já vi.

- Mas você não saiu de casa ainda não parou de chover.

- Mas é que meu amigo já me mostrou umas fotos. Eu sei que é lindo.

- Tava chovendo nas fotos também, porque pelo jeito nesse lugar só chove.

Ele olha para ela. Então volta a olhar para câmera.

- Como podem reparar ainda não parou de chover.

Filma pela janela, chove muito.

- Mas amanhã vai parar de chover.

- Vai sim. – irônica.

- Vai, eu coloquei ovos para santa Clara.

- Os últimos ovos.

- Vai valer a pena.

- Você colocou os últimos ovos na chuva?

- To tentando fazer parar de chover.

- E eu tava querendo fazer um omelete.

- Amanhã quando parar de chover eu vou comprar mais ovos.

Os dois ficam se encarando. Ele volta a olhar para a câmera.

- Ah já acabou a luz três vezes aqui, o que foi muito legal.

- Legal?

- Sim.

- O que tem de legal ficar no escuro e ter que tomar banho gelado?

- Aprendemos a valorizar a luz.

- Eu já a valorizo, não precisa ela acabar pra eu valorizar mais.

- A você entendeu.

A tela na câmera fica escura, porque a luz acaba.

- Quarta vez. – diz ela. Seguido de um trovão.

Ele acende um fosforo.

- Gente, vou ter que desligar, porque a aventura continua. Esse lugar é imprevisível.

- Não é não, eu sei que vai acabar a luz a qualquer momento.

- Vou ir nessa, aproveitar o escuro e brincar de algo.

- Nesse escuro só da pra brincar de gato mia.

O fosforo apaga. Ele da um miado.

Quarto dia de viagem. Ele sozinho em frente à câmera.

- E ai pessoal, Anderson na área, como estamos hoje? Aqui está tudo bem.

Ela senta do lado dele.

- Bem molhado!

Para ela.

- Chegou a pessimista.

- Não é pessimista, é realista.

Para a câmera.

- Ele ta dizendo que eu sou pessimista só porque eu disse que nunca mais vai parar de chover.

- É só uma chuva de verão.

- Sim de verão. Vai durar o verão inteiro.

- rá-rá-rá... engraçadona.

- Fala pra eles que você só perde pra mim nos jogos.

- Coitada.

- Quantos você ganhou até agora?

- Você está contando.

- Não precisa contar, você não ganhou nenhum.

- Ah não?

- Não.

- Não, mas é que eu estava deixando você ganhar, você já esta brava porque estamos presos.

- A estava deixando sim.

- Sim. – fala e da uma piscadinha para câmera.

- Então vamos apostar algo. Ai quero ver você jogando para valer. Apesar de já parecer que você estava jogando para valer.

- Mas não estava. Só que agora vou. Não vou mais deixar. Você quer ser má eu também sei ser má.

- Má? Um bichona.

- Você entendeu. Depois não vem chorar.

- Pode deixar que não. Afinal quem é o chorão aqui é você.

- Então vamos apostar o quê?

- Sei lá

- Fala ai, para a câmera para depois não vir dizer que a aposta não valeu.

- Pode escolher o que você quiser.

- Quem perder tem que ficar sem roupa durante 24 horas.

- E ser comida pelos pernilongos?

- Ta com medo?

- Não, vamos. Eu não vou perder.

Os dois dão as mãos fechando o acordo. Ela levanta e sai.

Para a câmera.

- Vou desligar pra mostrar para essa mulher quem é o macho da relação.

- Macho beta.

- Engraçadona. Cambio desligo.

Ela vem com o baralho.

- Vamos começar com o truco.

- Depois não venha chorar.

Ele desliga a câmera.

Quinto dia de viagem, ele está sério, pelado em frente à câmera, ela de roupa, rindo.

- Oi eu sou o Anderson.

- Vulgo peladão. – da risada.

- Esse é o nosso diario de viagem, estamos no quinto dia de viagem e ainda não parou de chover.

- E ainda por cima esfriou.

Ela fala e ri. Ele olha para ela sério.

- Eu deixei você ganhar.

- Não devia, agora corre o risco de pegar uma gripe. – ri com gosto.

- Não tem graça.

Silencio.

- A chuva continua muito forte. Não podemos sair de casa porque alguém, enquanto eu dormia, afundou o carro num banco de areia.

- Ei, eu estava tentando ir comprar comida.

- Mas ta cheio de comida aqui.

Silencio. Ela parece estar sem resposta.

Apaga as luzes

- Décima vez.

- Vou desligar porque eu estou com frio, esta acabando a bateria e eu não estou mais afim de falar.

- Ta com frio?

Ela fala e ri. Ele fecha a câmera.

Sexto dia. Não gravam nada porque a luz ainda não voltou.

Madrugada do sétimo dia. Liga a câmera. É ela, está sozinha.

- Oi aqui é a Clara, queria registrar isso.

Ela fica em silencio. Ao fundo ouve-se um som como se fosse um grunhido de um urso.

- Estão ouvindo? Não parece um urso? Então, mas não é. É o Anderson. Eu estou aguentando isso desde o primeiro dia. Um fim de semana tudo bem, agora quatro dias seguidos ninguém merece. Fora que ele é preguiçoso. Não mexe um dedo. A casa que ele falou que era algo como ‘uma choupana dos alpes suíços’, ta mais para uma ‘cabana de queijo suiço’. Eu não aguento mais ficar nesse lugar. Quero sair, quero internet, quero transito, quero morrer. Alguém por favor me ajuda. Obrigado por me ouvir, eu precisava desabafar, me sinto muito mais leve. Agora vou voltar pra lá, antes que o urso acorde.

- Clara?

- Acordou!

Desliga a câmera com tudo.

Liga a câmera. Algumas horas depois. Ele sozinho.

- Ih, será que eu esqueci a câmera ligada? Que se dane. Oi. Aqui é o Anderson. Só vim aqui dar um oi, você são os únicos que me escutam. Essa mulher não me ouve. O que aconteceu com a minha namorada? Tão ouvindo isso?

Ao fundo ouve-se um estrondo forte.

- Parece que um urso engoliu ela. – da risada. Não, agora falando sério, tem alguma coisa errada nessa ilha que transformou ela numa vaca. – ri de novo. Acreditam que ela tentou fugir e me deixar sozinho aqui. Sorte que eu acordei a tempo. Ela disse que estava indo comprar comida, mas por que estava levando as malas? Ela não me engana. Achei que deixando ela ganhar nos jogos ela ia ficar mais calma, mas não adiantou.

- Anderson, cê ta falando sozinho de novo? To começando a ficar com medo.

- Vim tomar água amor! – virando para gritar para o quarto. – ela acordou tenho que ir antes que ela pire mais. Desejem-me sorte.

Desliga a câmera com tudo.

Sétimo dia de viagem, ele está sozinho em frente à câmera.

- Oi, eu sou o Anderson e a chuva continua. Será que Deus mandou o diluvio e como estamos sem comunicação com o mundo não ficamos sabendo?

- Para de falar com a câmera como se estivesse falando com alguém.

- Pelo menos ela me ouve.

- Isso porque ela não passou cinco dias inteiro, preso numa casa sem nada pra fazer, com você.

Ela grita de algum lugar longe do alcance da câmera.

- Me deixa inferno.

- Inferno é estar presa nesse lugar com você.

Começam a discutir como se a câmera não estivesse ali.

- Podia ser pior.

- Como?

- Você poderia ser eu e estar presa com você.

- Não faz sentido.

- Não é pra fazer sentido.

Ela vem pra frente da câmera.

- Vou dar uma dica para você que está assistindo isso, se algum dia alguém perguntar para você: “se você fosse pra uma ilha deserta e pudesse levar alguém, quem você levaria”, nunca responda que levaria o Anderson.

- Ah é, não gostou vai embora.

- Quer saber, é isso que eu vou fazer.

Vai em direção ao quarto. Ele pega a câmera na mão e começa a seguir ela.

- Você vai mesmo?

- Vou, não aguento mais ficar nesse lugar.

- Mas o carro está atolado.

- Eu vou andando.

- Está chovendo.

- Se eu for esperar parar de chover vou morar aqui. Eu não aguento mais. To me sentindo o Tom Hanks no filme do terminal.

- Mas o filme que ele fica numa ilha é o Naufrago.

- Você entendeu.

Pega a mala e se encaminha para a porta. Ele segue filmando ela.

- Para de me filmar.

- Eu vou te filmar você indo, pra daqui a pouco quando você voltar com o rabinho entre as pernas, pegar a sua cara de arrependimento.

Ela mostra o dedo do meio para a câmera. Bate a porta e sai. Ele da risadas.

- Vamos terminando mais uma transmissão direta da ilha do medo. Cambio desliga.

Oitavo dia de viagem. ele sozinho de frente para a câmera. Pelado e de óculos escuros.

- Oi eu sou o Anderson, esse é meu diario de viagem, sim meu. Só meu. É meu e eu estou nú com a mão no bolso. – da risada – A Clara não voltou, mas em compensação o sol. – filma pela janela o sol está imponente e o céu sem nenhuma nuvem. – não sei como ela fez mas o carro não está mais no mesmo lugar. Ela conseguiu fazer ele pegar. Por isso ela não voltou. É impossível ir embora andando. O que quer dizer que eu estou preso. Queria ter ido junto com ela. Estou me sentindo tão sozinho. Amor se você estiver assistindo isso me perdoa. Não acho que você é uma vaca louca.

Começa a chorar. Desliga a câmera.

Entra a trilha de suspense.

Mostra o apresentador rindo. Quando percebe está sendo filmado para de rir. Retoma o tom sério.

- O Anderson foi encontrado um mês depois quando o dono da choupana foi ver se a casa estava em ordem depois de ter emprestado para o casal. Ele continuava pelado e de óculos, jogando domino com ninguém, alegando só estava perdendo porque o adversário dele estava roupando. E que não da pra jogar xadrez com peças de dominó.

A fita foi encontrada por um casal, alguns meses depois, que esteve na “choupana”, também, para fugir da rotina. Mas depois de assistir o vídeo desistiu de ficar e foram embora antes que começasse a chover, o tempo já estava fechando. Então procuraram o respectivo dono – Anderson que já havia se recuperado e estava com uma outra namorada. Devolveram a câmera, com a fita, mas não antes de postarem o vídeo na internet.

Afonso Padilha
Enviado por Afonso Padilha em 23/01/2013
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