O Manuel

Olhai o vagabundo que nada tem

E traz o sol na algibeira

À noite pendura o sol à beira de um valado

E dorme toda noite à soalheira

O Manuel é um pobre diabo, que mora numa casa arrendada pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Com um ar asseado, vagueia pela rua onde mora e o largo da Memória, sempre com boa disposição. De estatura baixa, seco de carnes e cabelo grisalho aparenta ter uns sessenta anos.

Para muitos não passa de um pobre louco, porém um louco muito especial, ao que sei, só recebe a visita de um sobrinho e, no entanto, trata da sua higiene e alimentação, a ponto de ter um óptimo aspecto.

- Este gajo dá comigo em doido. – Desabafava assim o João da loja de ferragens, olhando para o primeiro andar do prédio defronte, onde à janela estava o Manuel, que repetia:

- Amanhã vai chover, amanhã vai chover...

- Tá’ a ver, é todo dia nisto! Saiu uma maluca do andar e agora veio este maluco que me dá cabo do juízo. – Diz o João lamentando-se para mim.

- Tenha calma João, que o homem é inofensivo. – Retorqui eu com alguma convicção.

- Inofensivo? Não sei se o será… Já se me constou umas coisas que, a serem verdade, ele passa a saber quem é o troca-tintas.

- Mas que coisas? – Pergunto eu a sorrir perante a designação de troca-tintas, com que o João se auto-agraciava pelo facto de ser pintor.

- Depois, depois saberá.

Passado uns dias, dirigia-me para o café do Niquinho e ao passar em frente à pastelaria da Memória, encontro o Manuel no pequeno jardim da esplanada, ao ver-me sorriu e apontou para a árvore-da-borracha dizendo:

- Os figos já estão maduros.

Com o olhar fixo em mim e o dedo esticado na direcção da copa da árvore, parecia interrogar-me, então vês ou não vês os figos?

Surpreendido pelo insólito personagem, a minha reacção foi brincar com ele e olhando na direcção da árvore, respondo:

- Pois já e os pássaros já os estão a bicar.

Foi lindo de ver o sorriso de cumplicidade, com que o Manuel me mimoseou, como se no momento tivesse sido surpreendido pela resposta ou pela atenção que eu lhe dedicara, habituado à indiferença e ao escárnio das pessoas.

O Palmeiro, que me acompanhava, ficou surpreendido perante a resposta que dei ao Manuel a ponto de exclamar:

- Estou desconfiado que ainda és mais maluco do que ele.

Depois deste episódio, sempre que o Manuel me vê, diz-me sempre qualquer coisa. Uma das frases mais comuns é: «Não gosto de frangos, só gosto de frangas, frangos são rapazes e as frangas são raparigas».

Todos os dias, o Manuel, por volta das dezasseis horas, vai ao adro da igreja e na parte mais alta, do ponto de vista da Trv. da Memória, vira-se para Sul e com as mãos em concha na boca à laia de funil, respondendo a um chamamento imaginário grita:

- VOU JÁ! VOU JÁ! VOU JÁ.

É uma festa para os miúdos que por ali brincam e se abeiram dele e numa grande algazarra repetem: «Vou já, vou já.» Perante os risos descarados da garotada, o Manuel esboça um sorriso misterioso e sem dar cavaco à pequenada, dá meia volta de regresso à rua onde vive.

- Maluco? Maluco sou eu, que farto-me de trabalhar e ninguém me paga a renda da casa. – Assim se expressava o João para um cliente, enquanto contava um monte de parafusos.

- Veja lá você que o «menino» também se mete com as mulheres. Ai dele, se dirigir uma palavra que seja à minha!

Entro na loja de ferragens e deparo com esta conversa, não foi preciso ouvir mais nada para ficar a saber de quem estavam a falar; do Manuel, claro.

- Pobre Manuel, – comento, como que a substituir os bons dias – deve estar com as orelhas mais quentes do que um forno pronto a assar um leitão.

- Pois, pois, defenda-o Correia que ele merece! Não é à sua porta que ele está a azucrinar os ouvidos! Eu gostava de o ver aqui e ser ma-traqueado a toda hora, para ver se dizia pobre Manuel? O raio que o parta, mais quem se lembrou de o meter aqui na rua.

Ao ver o aborrecimento do João não lhe respondi, esperando com isso que ele se acalmasse. Enquanto isso, pus-me a imaginar qual seria o meu procedimento numa situação como a do João, porém não cheguei a nenhuma conclusão. Se por um lado devia ser complicado estar a levar com ditos repetitivos com um vozeirão de cana rachada, por outro lado, sentia uma certa pena daquele pobre coitado, que tinha por companhia unicamente a sua sombra.

De regresso a casa, vislumbro o Manuel a colocar meia dúzia de páginas de um jornal, no ecoponto do papelão, ao ver-me, sorri e aponta para o monte de caixas de papelão, que alguém por preguiça não as colocou dentro. Abanando a cabeça em sinal de desacordo o Manuel exclama:

- E o doido sou eu! E o doido sou eu!

Naquele momento, veio-me à lembrança a canção do vagabundo, que dorme toda a noite à soalheira.

Lorde
Enviado por Lorde em 22/01/2013
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