BUSÃO NOSSO DE CADA DIA

Após um árduo dia de trabalho (em pleno domingo, diga-se de passagem) que tivemos, eu e meu fiel ajudante, tomamos do ônibus que, enfim, nos levaria para casa. Sentamo-nos no banco de trás do enorme veículo. Da janela, contemplávamos distraídos, as lojas, barracas de vendas de cachorro quente, bancas de revistas, e agencias bancárias da extensa avenida Guajajaras no Bairro de São Cristóvão. Foi quando de repente um homem corpulento, aparentando uns cinquenta anos de idade, de pele branca mas, com o rosto bastante ruborizado, visivelmente ébrio, levantou-se da cadeira de onde vinha acompanhado de uma senhora de aparência um pouco mais jovem que ele, e avançou, com uma agilidade pouco comum para um homem em tal estado de embriaguez, sobre outro cidadão sentado logo atrás, e sem nenhuma razão aparente, começou a xingá-lo. Decerto o homem fazia um conceito bastante ruim da progenitora do outro, pois a comparou com a fêmea de equino, de suíno e de outros espécimes de comportamento bastante questionável. A voz do bêbado era ruidosa, dissonante e entrecortada de escalas entre alto e baixo. O que tornava os impropérios mais agressivos. Entretanto, o outro cidadão ouvia tudo sem esboçar a menor reação. Era um exemplo de paciência e tolerância. Nem mesmo quando os insultos tornaram-se mais pessoais, ele foi capaz de reagir. Não saberia dizer se sua serenidade búdica, era devida aos esforços da mulher ao seu lado que o tempo todo, pedia-lhe que se mantivesse calmo, pois aquele bêbado não sabia o que dizia. Ela deveria conhecer bem a sogra para tentar convencer o companheiro daquele modo. O certo é que aquele pacífico cidadão ficou quieto mesmo debaixo da chuva torrencial de xingamentos. O gordo bêbado deve ter percebido que suas provocações não surtiam nenhum efeito então, indignado consigo mesmo saiu de volta para o seu assento. Ouve um alívio geral dentro do coletivo. Os passageiros estiveram atônitos e atentos a cena patética. Alguns temiam pelo pior. Quantas tragédias tem acontecido nestes ônibus! Não faz muitos dias um cobrador fora mortalmente ferido a faca por um passageiro por ter-lhe exigido corretamente a identificação do “passe livre”. O assassino não mostrou a identidade, o cobrador não o deixou passar a roleta e teve a vida ceifada por tentar cumprir o seu honroso dever. Noutra ocasião, foi o motorista a vítima. Ali nos arredores do Anel Viário próximo ao Centro Histórico de São Luís. Um passageiro aparentemente bem intencionado pediu para descer pela porta da frente do ônibus. O motorista não concordou com essa condição dizendo-lhe que primeiro pagasse sua passagem. O outro insistiu que não pagaria nada. Após uma acirrada discussão entre eles, o passageiro puxou de um revólver e abriu fogo contra o motorista. Aquele cidadão teve dinheiro para comprar uma perigosa arma de fogo, mas não para pagar alguns centavos pela passagem (talvez por isso alguns digam que o valor da tarifa de transporte público em São Luis está pela hora da morte. Cruzes!).

São muitas as histórias trágicas que ocorrem dentro desses gigantes sobre rodas. Fora os covardes assassinatos tem os assaltos, os furtos de bolsas, as brigas, os abusos com as mulheres, os descasos com os idosos e os cada vez mais frequentes, acidentes de trânsito. Sendo estes fatos conhecidos da maioria da população, todos dentro daquele ônibus, receavam uma nova tragédia. Felizmente, tudo indicava que não seria dessa vez. Todos se voltaram aos seus próprios pensamentos interrompidos abruptamente pela breve confusão e eu tentei retomar meu cochilo. Minhas pálpebras começavam a pesar sobre a parte superior dos olhos e iam se fechando lentamente quando, de repente, aquele outrora calmo cidadão que tão indignamente tinha sido pejorativamente espezinhado pelo gordo bêbado, levantou-se de seu assento e dirigiu-se até aquele e como represália, desferiu-lhe também um monte inumerável de insultos. A exemplo de seu desafeto, também falou da mãe do outro e não satisfeito, falou do pai e da família inteira. Revelou-lhe, sem intenção de guardar segredo, que a despeito da avançada idade da progenitora do outro, ele não fez cerimônia de levá-la para sua alcova. Quando ouvi tais palavras, proferidas de modo tão chulo que não me permito repeti-las para não agredir os ouvidos dos meus potenciais leitores, pensei comigo mesmo “agora não tem jeito, o bicho vai pegar!” Acredito que isso era o que todos pensavam dentro do coletivo, nesse momento. Mas, para a surpresa de todos, o homem gordo manteve-se calado, mudo, soturno como se estivesse refletindo sobre tudo o que o outro proferia. Creio que, como eu, ninguém entendia nada do que estava acontecendo. A cena era tanto inusitada quanto ridícula. Não que esperávamos que o gordo de uma hora para outra saísse espancando o outro barbaramente, mas manter-se passivo quando sua mãe é insultada diante de todos, é bem difícil de entender. Mas era exatamente isso o que acontecia. O homem gordo não reagiu nem mesmo quando o outro cidadão, outrora tão pacífico, tomou de seu braço e lhe exigiu que descessem do ônibus, os dois para que resolvessem suas diferenças na rua. Acredito que se não fosse o peso descomunal do homem gordo, o outro indivíduo teria conseguido de fato, arrancá-lo do seu assento. Depois dessa atitude mais rude de seu agressor, pudemos todos então, perceber que aquele também estava bêbado. As mulheres de ambos estavam às vias do desespero, uma tentando conter o repentino surto de fúria de seu companheiro, a outra protegendo seu parceiro das investidas do seu desafiante bêbado. De nada adiantou tanta confusão pois nada tirava o gordo de sua apatia. Seu desafeto ao perceber isso resolveu, enfim deixá-lo quieto e virando-lhe as costas foi-se sentar. “Qual é o problema desses caras” nós nos perguntávamos perplexos. Olhares recriminadores direcionavam-se aos dois bêbados. Todos aguardávamos uma nova cena patética. Acredito que alguns estavam na iminência de intervir caso os beligerantes reiniciassem um novo confronto. Fosse por essa razão ou não, o certo é que pouco depois os dois bêbados saltaram do ônibus um depois do outro respectivamente, no mesmo ponto. Curioso com o que poderia acontecer entre eles, coloquei a cabeça para fora da janela, contrariando a lei de segurança no transito e interceptando a visão pelo retrovisor, do motorista que tentava também ver como seria o encerramento daquela história. O motorista inclusive deslocou o ônibus o mais lentamente possível para não perder nada. À distância pudemos ver os dois homens fazendo um inconcebível esforço para tentar, não se desvencilharem um do outro, mas para separar suas companheiras que se engalfinhavam furiosamente presas pelos longos cabelos uma da outra. A despeito do ridículo da cena, não pudemos deixar de sorrir. Era hilário. Patético. Inusitado.

Passados vários dias desse estranho incidente, encontrei com um cidadão que teria sido testemunha dos acontecimentos daquele fim de tarde dominical. Resumidamente (como convêm ao bate papo no ônibus) ele disse-me:

"Os bêbedos eram irmãos, casados com duas irmãs que os acompanhavam no ônibus. A discussão fora provocada por causa delas. Ou talvez deva se dizer que fora por causa da sogra delas, a mãe dos dois cidadãos, claro. Esta ora ficava a favor de uma ora a favor da outra. Jogava com as noras pondo uma contra a outra. Os maridos se envolviam e vez em quando essas cenas se repetiam mesmo em lugares públicos. Depois saiam juntos de novo. O caso só foi solucionado quando descobriram a intriga criada pela velha matrona. Esta desejava proteger os rebentos. Não concordava com o casamento deles. Não queria que a abandonassem. Por essa razão tramava contra as noras. Quando foi descoberta, os filhos a internaram num asilo onde ainda apronta das suas inventando historias mentirosas com a vida alheia. E a paz voltou a reinar entre os irmãos, e irmãs entre cunhados e cunhadas. Vez ou outra visitam a velha sogra no asilo, lá ela tenta enganá-las dizendo-se perseguida por outros internos. Mas agora as noras já sabem lidar com ela."

São Luis 20 de fevereiro 2012

al morris
Enviado por al morris em 21/01/2013
Reeditado em 02/01/2014
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