"A mesmice"
Contando histórias...
A mesmice
Há muitos anos atrás, havia uma família que tinha hábitos muito estranhos, muito metódicos. Todos faziam as mesmas coisas, nos mesmos horários, nos mesmos lugares. Nada fazia Arthur mudar esse comportamento. Todo dia era a mesma cena, em determinados momentos, exatamente como era de costume. Estranho e extravagante, ele mantinha esses hábitos adquiridos, sem titubear, parecia que sua vida se resumia em sempre fazer as mesmas coisas, em horas cronometradas pelos loucos monótonos costumes que tinha aprendido e sido criado. Os vizinhos já tinham se acostumado, até acertavam suas horas pelos relógios deles. de tão precisos que eram. Era uma eterna rotina de idéias antiquadas e amalucadas.
Arthur, desde tenra idade, já era estranho. Cabelos bem vaselinados, esticados, repartidos no meio com uma pastinha de cada lado. Era um engraçar, engraçado, motivo de pilhérias, deboches, risinhos de cantos de boca. Cresceu e continuou com esse aspecto ridículo, solitário, envergonhado, mas não conseguia se modificar. Nos estudos primário, secundário, pré- vestibular e faculdade, era a mesma mania, a mesma fisionomia de "cara de tacho", como diziam. Dentro dele cresciam revoltas mudas, tristezas dissimuladas, sem perspectivas de ser alguém diferente, sem pastinhas, sem cabelos engomados, com namoradas, enfim ser gente. Ele sonhava e, nos sonhos, era o sedutor, o bonitão, o gostosão, com as moças se oferecendo pra ele, e ele disputado, convencido, envaidecido, escolhendo as mais belas e atraentes, vivendo a vida com tanta felicidade e elegância, que só nos sonhos ele conseguia.
Ao passar dos anos, ele bem situado, salário alto, carro importado, desfilava só, sempre solitário, naqueles hábitos herdados, mostrados como normais. A família, aos poucos morrendo e, de repente, ficou só naquele casarão arrumado, decorado à moda antiga, tudo nos mesmos lugares, desde que gente ele tinha se transformado. De manhã cedo, despertador tocando, ele se levantando pra cumprir aquela rotina, que tinha se imposto continuar. Vestindo-se sempre com apuro, lá se ia ele, dentro de seu carro importado, pastinhas no cabelo, bigodinho fininho bem penteadinho, gravatinha borboleta. perfumado, envernizado, bem sacudido com ares de moço orgulhoso, de uma beleza, que não possuia. Ah! Aquela piteira entre seus dedos, de unhas polidas, manicuradas, fumando "Pour la noblesse", cigarros trazidos de fora para imitar seu pai, sempre projetando no ar seus olhares estudados que julgava atraentes, sedutores. As moças até que achavam ele bonzinho, mas nada queriam com uma pessoa que não tinha evoluido, se modernizado, não queriam ser ironizadas, ser motivos pra galhofas.
Mas, como sempre existe um mas na vida, ele modificou sua conduta. Certa manhã não apareceu, sumiu do mapa, ninguém o viu, nem seu carro, nem sentiram seu perfume, muito menos viram sua gravata borboleta, seus olhares pro vazio, cheios de sonhada sedução. E acharam estranho o que estava acontecendo, mas perguntar pra quem, se ele nunca permitia se aproximarem? A casa, um silêncio só, nada do cãozinho que ele levava ao jardim e ficava brincando com ele, numa conversa que só eles entendiam, mas todos ouviam músicas tocando alto, com as janelas abertas e luzes acesas, que davam um ar de vida naquela casa enorme de canto de rua.
Dias se passaram nessa monotonia, sem platéia e sem palco, os vizinhos se alarmavam e se preocupavam com o ilustre anônimo amigo-vizinho que já fazia parte de suas vidas. Mas as melodias ouvidas pelas janelas da casa, os ares de encantamento sentidos faziam crer que nada de maior tinha ocorrido, que a mais perfeita paz estava os envolvendo. Um belo dia, eis que aparece o galã anônimo completamente modificado. Trajando roupa esporte, tênis, cabelos cortados, eriçados faziam dele uma pessoa feliz, moderna, diferente. Andava, não, trotava com um sorriso de indescritível felicidade, cumprimentando todo mundo, pilheriando com alguns, todo faceiro, todo feliz da vida. Algo tinha acontecido pela metamorfose que tinha se instalado nele, fazendo-o estar assim, nas nuvens de um céu coberto de estrelas, que cintilavam ao seu redor.
Ah! Algo tinha acontecido na vida dele e algo muito importante, porque ele era a cópia de uma pessoa diferente, alegre, feliz, distribuindo tanta simpatia, tanto afeto. Arthur, enfim, tinha conhecido o amor, o amor em forma de uma mulher fantástica, linda, inteligente que tinha mexido tanto nas suas entranhas, que fizera ele se modificar, louco de felicidade... E ela, já agora adentrada em sua casa, era o espelho da mulher moderna, cheia de atraentes gostos em tudo que passava as mãos. E a casa, outrora tão antiga, tão centenária, estava se transformando em uma vivenda atraente, colorida, modernamente decorada. Arthur estava num ápice de alegria e felicidade, já era outro homem, outra criatura cheia de energia, de mocidade, distribuindo atenção a todo mundo que o conhecia. Era a prova de que o amor move montanhas, aquece ares, enternece corações, dá sentido à vida.
Para encurtar a estória, a mulher do "seu Arhur" não era a mais decente e digna que ele merecia, estava mostrando suas unhas, suas preferências nas festas, nos bailes que estavam sempre ocorrendo naquela casa, eram verdadeiros bacanais, dignos da maior espelunca luxuosa que já tinha existido. Era a cortesã, a dona de pensão de mulheres fáceis, ricas e bonitas que se entregavam por vinténs, mas gabava-se por ser a perfeita imitação de cenas tipicamente parisienses, com seus salões, seus clientes ricos e sua vida de libertinagem exuberante.
Mas Arthur pouco estava se incomodando, imerso naquela ilusão do amor de uma mulher tão linda, tão sedutora que era dele, apenas nos intervalos de seus trabalhos, mas era. E ele, assim contimuou a ser feliz da vida, todo elegante, perfumado, fumando "Pour la Noblesse", mas sem cabelo esticadinho, sem pastinhas, sem bigodinho, sem borboletas, sem nada, só imerso naquele amor embriagador. E lá ficava ele, homem moderno agora, sem perpectivas, mas muito feliz. Tinha jogado a mesmice pro alto e estava tomando um porre de felicidade...
Maria Myriam Freire Peres
Rio de Janeiro, 29 de janeiro de 2005