Ontem vi o meu pai

Às oito e trinta lá estava eu à espera que o meu irmão Carlos descesse para darmos início á nossa viagem. Na véspera combinara com ele a hora de saída e ficou assente que partiríamos às nove. Agora, esperava paciente que ele saísse do buraco. O meu sobrinho David já se encontrava na oficina a laborar e para lá me dirigi após estacionar a carrinha.

- Já chegou a tia Clara?

- Não tio! Ainda não os vi chegar e já aqui estou desde as oito.

A espera não foi longa, pouco depois aparece o meu irmão e logo a seguir a minha irmã Clara. Entramos no carro e a nossa viagem começou. Andamos cerca de cinco minutos, quando Carlos pára o Mercedes do filho.

- Passa para aqui. Leva-o tu agora.

Não me fiz rogado, desejoso de conduzir aquele carro potente, de mudanças automáticas. Trocamos de lugar, ao tempo que ouvia reclamar, em forma de buzinadelas, pela porta meia aberta do automóvel. Após as indicações sobre alguns comandos e especialmente a perna esquerda, que num carro vulgar serve só para a embraiagem.

- Não te esqueças! Faz de contas que só tens a perna direita. É com ela que travas e aceleras, que é o que precisas de fazer.

Lá fomos nós, numa viagem de cerca de trezentos quilómetros. A princípio, um pouco a medo, cumprindo rigorosamente as instruções dadas. Circulando a uma velocidade menor do que o normal, para uma pessoa com muitos anos de condução. Pelo canto do olho, ia reparando no olhar do meu irmão que às tantas comenta.

- Já vou com uma dor na perna, de tanta força fazer a acelerar.

-Tem calma que ainda não me ambientei ao carro, mas na auto-estrada já anda mais.

- Deixa-te ir assim que vais muito bem. - Comenta a minha irmã pouco amiga de velocidades e meio desconfiada quanto à perícia do motorista.

- Então António, nos cento e cinquenta? já vais a abusar.

- Oh! desculpa Clara, descuidei-me, mas não é meu hábito andar a esta velocidade.

- Ah pois!

- A sério!.. Por duas razões; primeiro por causa da multa e economia de combustível. Segundo, porque entendo que devo conduzir de forma a não preocupar quem transporto.

- Apoiado, então és cá dos meus.

O carro continuava absorver quilómetros sem nada de anormal. Eu que até aí estava concentrado em não utilizar a perna esquerda. Já conversava descontraído e já sem reclamações quanto à velocidade.

Entramos numa rotunda. De súbito, aparecendo do nada, surgiu uma viatura em grande velocidade, o que me obrigou a travar, só que com os dois pés, convencido que estava a utilizar a embraiagem e o travão. Valeram os cintos, em não batermos com o nariz nos vidros, tal foi a rapidez com que o carro estancou, com os dois pés do inexperiente condutor a carregar no travão.

Seguiu se uma gargalhada do meu irmão, porque momentos antes, tinha dito que já me sentia unha com carne com o automóvel. Chegámos a Canas de Santa Maria, estacionei o automóvel, entreguei as chaves ao Carlos com a recomendação da perna esquerda, o que originou nova gargalhada. Dali fomos ao talho de uma conhecida nossa, comprar morcelas. Seguiu-se uma prova ainda crua das morcelas, a verificar se não tínhamos sido enganados pelo homem do talho. De seguida, cada qual telefonou às suas caras metades, sendo que eu, aproveitei para me justificar, do exagero dos quatro quilos que comprei. Almoçamos no “Massaroco”. Enquanto esperávamos pela comida, dei a ler ao Carlos, as folhas de umas histórias escritas dias antes. Bem-dispostos e de barriga aconchegada, prosseguimos em direcção ao Caramulo.

Serpenteando encosta acima, chegamos por fim ao lar onde se encontrava o meu pai. O edifício já entradote na idade, a avaliar pelo aspecto envelhecido. Fora em tempos um sanatório, agora servia de lar na última fase de vida daqueles seres humanos.

Subimos até ao segundo andar por umas velhas escadas, revestidas de um produto plástico, escondendo o desgaste de milhões de pés. Uns firmes e saltitantes, outros arrastando-se doentes e sofridos, subiram, desceram, dias, meses, anos. Sempre na esperança da cura da maldita tuberculose.

Erradicada a doença, servia agora de “Lar”, se é que se pode chamar de lar a um edifício desconhecido, numa terra que não é a nossa, com gente desconhecida cheia de lamentos e ais.

Desterrados e despojados de tudo que lhes era querido. Do seu cantinho, da velha cama, da malga predilecta, dos cheiros, do toque do sino aos domingos, das ruas e quelhas calcorreadas vezes sem conta, onde brincara em criança, onde crescera, namorara, casara e vira os filhos crescer. As fontes, os montes, os caminhos e as caras conhecidas que faziam parte do seu mundo, subitamente tudo desapareceu na expiação do grave crime de ter nascido.

Numa pequena sala, bastante iluminada pela luz que rompia através dos vidros da marquise de ferro. Uma mesa com cadeiras, quatro maples e uma televisão. Antecedia-lhe uma ante câmara onde se encontrava um banco corrido.

Logo de entrada o vimos. Sentado num maple lá estava o meu pai. O aspecto surpreendeu-nos pela positiva. Bem barbeado e com alguma cor no rosto, a contrastar com a minha última visita, em que a minha esposa vinha chorosa pelo ar decadente em que o viu. Hoje tinha um ar vivo e esboçava um leve sinal de sorriso, pese o facto de não reconhecer os filhos. Naqueles momentos revi imagens daquele homem a degradar-se aos poucos.

Aquele homem que agora não reconhecia os filhos e constantemente tirava e tentava colocar um pequeno barrete de lã. Aquele homem, que perdia a paciência num piscar de olhos, mas capaz de enfrentar fosse quem fosse na defesa dos filhos. Aquele homem quando cego pela fúria nos tareava, por vezes injustamente, mas que não comia todo o farnel, só para mimar os filhos quando chegava do trabalho. Aquele homem que ficava até às tantas a reparar o calçado dos filhos, embora cansado de um dia de trabalho. Aquele homem que num acidente de bicicleta, por minha culpa, tombamos os dois e com a roda da frente num oito esperava uma tareia, mas perante a minha aflição, consolou-me e não mais falou no tombo nem no prejuízo, ainda dizendo à minha mãe que a culpa fora dele. Aquele homem que me dava a mão e a metia nos seus bolsos para mas aquecer. Sim aquele homem que não me reconhece, mas que eu conheço, sim, aquele homem é o meu pai.

Agora vejo-o com aquele ar parado, sem eu perceber se ele se dá conta de onde esse encontra. Talvez isso me sirva de consolação. Pois tal como ave habituada a movimentar-se por todo lado, não o estou a ver aguentar tal prisão.

Por isso lhe prometo meu pai, se algum dia melhorar da cabecinha, é para o pé de mim que o senhor vem, para poder acabar os seus dias, da mesma maneira que gostaria de acabar os meus.

António Correia

Lorde
Enviado por Lorde em 16/01/2013
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