O desejo
No saguão de espera os parentes se revezavam na disputa pelos lamentos mais sentidos:
“Meu tio, meu tio, tão novo, tão bom... Morrer assim; que injustiça!”
“Meu irmão... Trabalhou como um burro a vida toda. Para isso.”
Quando se cansavam das ladainhas, sobrinhos, irmã, cunhados e a futura viúva passavam a discutir os detalhes do funeral: quantas coroas; alças prateadas ou douradas; velas de qual tamanho, e tudo o mais. Cinco minutos depois, porém, já o futebol e as novelas reanimavam a conversa; às vezes algum enfermeiro desavisado tinha de pedir silêncio.
Pressentindo que não veria a próxima alvorada, às dez da noite o Dr. Hermes mandou chamar Dona Ciça, a futura viúva. Uma tímida enfermeira balbuciou por entre a fresta da porta:
“Ele quer vê-la. Por favor.”
O marido acenou para que a esposa se abaixasse; queria lhe falar ao pé do ouvido. Tomou-lhe as mãos entre as suas e sussurrou, respirando com dificuldade:
“Mulher... Não tivemos filhos, mas você é nova ainda... As fazendas são suas... Está no testamento. A casa também. É tudo seu, meu bem. Belinha acha que vou deixar para ela. Mal sabe... Não deixa ela te enganar: ela vai dizer que eu já lhe havia dito isso. Pé firme, meu amor... Jura?”
D. Ciça enxugou algumas lágrimas, e jurou vezes seguidas; disse que iria até o fim do mundo, se necessário. Por sorte Dr. Hermes abraçou a esposa, e ela pode sorrir com tranquilidade, sem que ele notasse. Então pediu-lhe que chamasse sua irmã, Arminda. D. Ciça franziu o lábio – não se dava muito com a cunhada – mas preferiu não discutir àquela hora. Fez como pedido.
“Minha irmã... Minha irmã... Estou de partida, minha irmã. Mas não se preocupe: não a deixarei desamparada. As duas não vão levar tudo: pus no testamento as fazendas e a casa para você. Elas ficarão com o resto.”
Arminda ainda tentou argumentar que era generosidade excessiva do irmão; que ele mudasse o testamento enquanto havia tempo. Não queria se indispor com a cunhada; podia ser bem pior.
“Quando o advogado chegar já terei ido, minha irmã... Só cuide para que elas não te passem a perna: dirão que eu disse outra coisa; vão tentar arrancar de você o que é seu de direito. Mas lembre-se: elas ficarão com a empresa, os apartamentos de praia, os carros e os investimentos. Você me promete?”
Sem saber bem o que prometia, a irmã assentiu, jurou e quase empenhou a alma; não cabia em si de felicidade por ficar com as duas grandes fazendas e com a mansão no centro da cidade.
“Chama agora a Belinha... Quero ter uma palavrinha com ela também.”
Belinha fora o nó do casamento: amiga de colégio de Arminda, foi ela quem apresentou a própria irmã ao irmão desta. Era dez anos mais nova que D. Ciça; tinha um par de tranquilos olhos azuis e a expressão nunca muito definida.
“Minha cunhadinha... Minha flor... Eu não podia esquecer de você; não te deixaria desamparada, depois de tudo o que você fez por nós. Pus a casa e as fazendas no teu nome.”
Belinha se esforçou para fazer uma cara espantada, mas apenas agradeceu, um pouco sem jeito. Um segundo depois tentou negar: alegou que não tinha tal direito, que nada queria; ensaiou diversas recusas, mas acabou acompanhando a marcha fúnebre. Quando estava com a mão na maçaneta, Dr. Hermes chamou-a novamente:
“Só mais uma coisa.”
Como fizera com a esposa, tomou as mãos da cunhada entre as suas e sibilou-lhe ao ouvido:
“Sempre te amei; quanto tempo perdido...”
Belinha tentou se desvencilhar, mas Dr. Hermes ainda tinha algumas forças. Com um puxão rápido, tascou um beijo à boca da cunhada, que não conseguiu escapar:
“Ah, se eu tivesse feito isso antes...”
Belinha arregalou os olhos e pensou duas vezes antes de sair correndo do quarto. Recompôs-se à porta, e deixou o moribundo sem olhar para trás, embora sentisse o coração na garganta. Mas já era tarde.
À meia-noite Dr. Hermes expirou. Não houve quem não comentasse o estranho sorriso do defunto, meio irônico, meio satânico. Os olhos abertos imprimiam um tom horrível à figura, por isso alguma alma piedosa se apressou a fechá-los. Mas ninguém conseguiu desfazer o sorriso. Foi velado e enterrado com ele.
Mal saíram do cemitério as três mulheres, sempre por meio de alusões e indiretas, especulavam umas com as outras sobre os respectivos quinhões da herança. Não tardaram a discutir pelas fazendas e pela casa, cada uma acusando ardilosamente a outra de distorcer as palavras do falecido. Um sobrinho quase teve de apartá-las. O motivo, porém, era outro: as três haviam sido muito rápidas; descobriram que a casa e as fazendas estavam atoladas em dívidas, e que o montante necessário para resgatá-las traria pouca compensação. Cada uma tentava convencer a outra, com toda a gentileza, a assumir o direito de retê-las; preparavam-se, como convem, a uma futura briga bem mais séria.
Três dias depois o advogado reuniu os parentes e abriu o testamento. A esposa, a irmã e a cunhada sentavam-se na primeira fila, e torciam as mãos de tempos em tempos, com dificuldades para permanecer nas cadeiras. A leitura começou estranha: após uma preleção sobre seu próprio estado de saúde – um câncer terminal aos quarenta e dois anos – o falecido falava longamente de seu amor pela família. Após quase uma hora de intermináveis elogios e pedidos de desculpa, o texto começou a tratar das propriedades:
“... e deixo minhas fazendas, situadas na cidade “x”, e minha casa, situada à rua “y”, para a mulher que mais amei na vida, minha companheira Gisele.”
As três se entreolharam, não se sabe se aliviadas por não haverem recebido aquela herança maldita, ou espantadas diante da confissão da existência de uma concubina. D. Ciça não sabia se agradecia ou maldizia o falecido; Belinha tentava consolar a irmã, mas mal disfarçava os suspiros de alívio; Arminda olhava para o alto, agradecida, e de viés para a cunhada, começando a especular sobre o sorriso do irmão. Sentia uma comichão maligna que a induzia a provocá-la.
Então o advogado fez um aparte:
“A título de esclarecimento, há uma semana o Dr. Hermes vendeu setenta por cento do legado e saldou as dívidas dessas três propriedades...”