GUARDADOS
“Papai, nunca se esqueça que eu te amo. Parabéns prá você. Felicidades ao senhor e que Deus o abençoe. Amanda.”
Ele nunca abria aquela caixa cor de chumbo. Ela ficava em cima da última prateleira da estante dos livros e ele nunca a tirava. Quando ganhava alguma coisa de valor sentimental, simplesmente suspendia a tampa a jogava lá. Muitos anos assim, a caixa era grande.
Mas ele perdeu um documento fundamental para fazer a transferência do carro. Vendeu o velho fiat uno azul metálico, companheiro de 8 anos, e já tinha fuçado todas as pastas e outros lugares possíveis e imagináveis e nada. Como morava sozinho, nem podia perguntar ou botar a culpa em alguém pelo sumiço.
A caixa das cartas e cartões guardados era a última e única esperança. Se não estivesse lá, adeus.
Ele virou a caixa e deixou que todas cartas, cartões, canhotos, guardanapos, fotos, postais, bilhetes, papéis de recados, post its, telegramas, receitas, comprovantes de votação, segundas vias de documentos, tudo se espalhasse pela mesa da cozinha. Sentou e começou a procurar, primeiro dentro dos envelopes. E foi lendo o que encontrava.
Aquele cartãozinho escrito com uma letra garranchada era da Amanda, sua única filha. Como não tinha data, ele precisou que ela devia ter uns oito, nove anos, pois a letrinha era pouco arrumada. Então, era de 1988. O cartão tinha um carro na frente com o nome parabéns dourado e dentro um daqueles dizeres pausterizados, de felicitações. Mas o mais importante era a letrinha dela, muito mimosa. Amanda agora estava na Holanda, fazendo um MBA em gestão de resíduos sólidos. Foi com um grupo de três amigos, todos engenheiros. De vez em quando, mandava um email ou conversava com ele no Facebook. 30 anos já. O tempo voou.
“Professor, queremos dizer que o senhor é o melhor professor que tivemos. Muito obrigado!! Que Deus lhe ilumine sempre. Da turma de Sociologia de Lagoa da Redenção.”
Era um pedaço de folha de papel chamex, com essa frase escrita em letra de forma e, em volta dela, um monte de nomes. Foi uma turma que ele teve quando andava pelo estado ministrando aula nos cursos de formação de professores, exigência do MEC. Foram muitas turmas, ganhou uma grana, conheceu muita gente boa, fez amigos de até hoje.
“Otávio, Rondônia é uma floresta só. Essa é a foto da estrada Madeira-Mamoré. Depois eu mando outros postais. Com amor e saudade, Júlia. Rondônia, 13-07-1975”.
Júlia não mandou mais nenhum postal. Esqueceu-o. O tempo e a distância são os únicos remédios para qualquer tipo de amor que não é pra dar certo. Mas, enquanto deu, foi bom.
“Maninho, feliz aniversário! De quem ama muito você, Josefa.”
A irmã, funcionária da Receita Federal, sustentou-o durante todo o ensino médio, quando ele teve de mudar do interior para a capital para tentar uma vida melhor do que a de atendente de loja de roupas ou calçados, que era o destino de todos os colegas dele. Seu pai acertou, e hoje ele ostenta uma carreira brilhante como professor de inglês, renomado, reconhecido, cheio de títulos.
“Nunca esqueça de que eu te amo, Otávio. Este guardanapo guarda a minha boca, que é e será sempre tua. Sua amada, Vânia.”
A primeira mulher, Vânia, a melhor mulher da sua vida inteira, morreu logo depois do parto, complicações ou erro médico. Ele nunca quis investigar. Chorou muito, entrou em depressão, a menina ficou sendo criada pela mãe dele, enquanto ele corria o mundo atrás de grana, nos fins de semana, para complementar o salário. O guardanapo tinha uma boca vermelha; naquela noite, lembra bem, ele a pediu em casamento.
“Seu Otávio, tem uma lasanha na geladeira pro senhor. Boa noite.”
Cássia era uma ótima empregada. Depois que se separou da Fátima, sua terceira esposa, ele foi morar sozinho num apartamento atrás da escola onde trabalhava. Cássia ele encontrou quando foi fazer compras num supermercado perto e ela estava na porta, pedindo emprego a quem passasse. Resolveu dar uma chance a ela. Ela ficou quatro anos com ele, indo duas vezes por semana e fazendo a faxina e a comida. Saiu depois que ele, um dia, chegou meio alto em casa e quis pegar nos peitos dela. Pediu perdão, mas ela não aceitou.
“Autorização para transferência de propriedade de veículo ATPV. Autorizo o departamento estadual de trânsito – Detran, transferir o registro deste veículo, para:”
O danado estava dentro de um envelope verde, colado com uma fita durex e com o nome ‘importante’ escrito a caneta vermelha. Pronto. Era só entregar preenchido e pegar a grana. O cara já tinha ligado três vezes querendo pagar.
Mas ele resolveu não sair mais de casa naquele dia. Ia gastar o resto da tarde e a noite para ler todas aquelas lembranças, para ver como tinha sido, afinal, a sua vida.