Eu matei-o

Eu matei-o!

O trabalho do menino é pouco mas quem o perde é louco. Assim pensava a minha mãe, e antes que alguém se lembrasse de lho recordar, assalariou-me a tempo inteiro.

Tinha a incumbência de prender no pasto as três ovelhas que tínhamos e à tardinha trazê-las para o curral, além de ter que olhar pelos meus irmãos que já eram dois sempre que a minha mãe ia para o amanho da fazenda.

O Aníbal já corria por todo lado. Carlos ainda bebé só me dava chatices, quando acordava, berrava que nem um condenado. Eu bem embalava o berço, para ver se o calava, mas nem com rolhas de açúcar ele sossegava (lá voltamos ao crime de empanturrar a boca das crianças com açúcar).

Lá fora ouvia a algazarra dos miúdos na brincadeira, eu desesperado via o tempo a passar e nada do ranhoso adormecer. Com a raiva a crescer-me cada vez mais, embalava, embalava com tanta força que só pela força da gravidade é que ele não saltava do berço.

- Ó Toino anda lá que faz falta um “prá” baliza – Grita alguém da rua pondo-me ainda mais nervoso. A fúria que de mim se apossou era irracional. Lá fora a brincadeira à minha espera e eu agarrado àquele berço, em forma de gôndola que eu empurrava de forma perigosa, até que o inevitável aconteceu. Empurrei com tal força que o berço empinado virou-se ao contrário ficando o meu irmão por baixo, amarfanhado entre cobertores e lençóis.

A raiva de há segundos transformou-se aflição. O meu irmão já não chorava. Peguei nele, abanei-o e ele nada. Num choro aflitivo corro para a rua gritando: acudam-me! Acudam-me! Eu matei-o. Eu matei o meu irmão.

Se alguém tivesse chegado naquele momento, verificaria uma cena a que não ficaria indiferente. Rodeado de crianças, estava uma outra chorando convulsivamente que repetia sem cessar: Eu matei-o, eu matei-o.

Ninguém poderá imaginar o que sentia naquele momento. Um aperto num peito de seis anos, porém com responsabilidade de adulto. O medo das consequências dum acto irreflectido. Agora toda a gente olhava para mim com ar reprovador. Até a senhora Gracinda a quem eu recorria nas horas de aflição, sorria com ar indecifrável. Parecia-me que dizia: ai mataste, agora também morres.

Com os olhos vermelhos de tanto chorar, via tudo desfocado, as vozes soavam-me confusas, como se de repente todos falassem uma língua que eu não entendia.

Não aguentei mais, desatei a correr como um animal em pânico que na sua ânsia de fuga corre, corre até que lhe faltem as forças. Na fuga, sentia que me perseguiam, berrando frases indecifráveis para os meus ouvidos. Esgotado de tanto correr, aceitei o meu destino. Por fim alguém me agarrou. Já não chorava, antes soluçava num ritmo que não dominava.

O teu irmão está bem! Gritavam-me sem que eu desse sinais de perceber. Sacudiam-me dizendo, o Carlos está bem, porém continuava num autismo em que não percebia o que diziam. Só acordei quando me colocaram o meu irmão nos braços. Reparei então que tinha um pequeno alto na testa, devido à queda que deu.

António Correia (Lorde)

Nota: Este texto foi extraído da minha história de vida e foi um facto real.

Lorde
Enviado por Lorde em 06/01/2013
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