A minha vingança

A minha vingança

Que saudades que eu sentia dos tempos em que as minhas primas me tratavam por Toninho. De repente, como num passo de mágica, passaram a tratar-me por Tónio. Então, adeus mimos: já não havia os tradicionais figos secos, as bolachas e um ou outro rebuçado. Bastou ter feito a quarta classe, para tudo o que eu mais prezava se acabar. Bem!.. tudo, tudo, não, as minhas pesquisas pelos campos continuavam, numa procura constante pelas árvores de fruta temporã, principalmente cerejas.

Agia só, porque numa experiencia anterior em que fui acompanhado, apanhei um susto em que corri o risco de ser descoberto e as consequências poderiam ser-me nefastas, se por acaso algum zunzum chegasse aos ouvidos do meu pai. Nas minhas andanças, tinha um concorrente de peso, o capitão, ladino e conhecedor como poucos da flora da aldeia. Andava normalmente sozinho, no entanto, se algum proprietário o via punha-se logo à coca, tal era a fama que o precedia.

A Zanga

Apesar de ser meu vizinho ou talvez por isso mesmo, eu tinha umas contas a ajustar com o capitão. Numa rixa entre nós (teríamos uns sete a oito anos cada um), depois de rebolarmos pelo chão agarrados um ao outro, chegamos à conclusão que sem armamento nenhum venceria. Uma corrida até casa, até ao arsenal doméstico e lá estávamos nós novamente a tentar amedrontar o outro, um com uma enxada, outro com uma forquilha, cada um com mais medo que o outro, até sermos separados desta luta de galos, perdão, de garnizés.

Não sei o que contou ele ao pai, para o Sr. Aníbal ter ido falar com o meu. Resultado, levei a maior tareia da minha vida, a ponto de ficar com o rabo todo negro e de cama durante dois dias.

Nunca achei que eu fosse do género vingativo muito embora a sova ainda estivesse presente no meu espírito.

Num domingo antes da missa, dirigia-me para os lados da quinta de Carvalhiços, onde sabia haver uma grande cerejeira branca no meio da vinha e devagar, pé ante pé, não fosse o caseiro rondar por ali, fui-me aproximando do alvo quando um pequeno estalido me fez estacar e pôr os ouvidos em alerta máximo. De cócoras, escondido entre a ramagem das videiras, tentava descortinar o motivo do ruído que me alarmou. Um amarfanhar de folhas fez-me olhar em frente e reparei, a uns sete a oito metros, que a cerejeira que eu procurava abanava sem haver vento. Fixei o olhar na parte da árvore que mais abanava e que vejo eu, o capitão, todo lampeiro a encher o pandeiro em cima de um grande ramo.

«Olha o melro!.. Então é esta a tua devoção? Mas deixa que é hoje que mas pagas», penso eu, enquanto olho em redor à procura de pedras. Com toda a habilidade que as lutas de casculhadas me permitiam, atiro três pedradas para cima da cerejeira ao mesmo tempo que grito com voz rouca imitando o caseiro. – Ah sacana! É hoje que te mato!

O capitão deve ter apanhado o maior susto da vida dele. Ao sentir aquela saraivada de pedras, não desceu, atirou-se de uma altura de perto de 5 metros estatelando-se no duro chão saibroso da vinha. Por uma fracção de segundo pensei que devido à queda estaria inanimado, mas qual quê? Levantou-se com a ligeireza de um gato e correu por entre os corrimões de videira. Na precipitação da fuga não se apercebeu que no fim da vinha havia outros corrimões atravessados. Ou que não visse ou que na aflição tivesse olhado para

trás, foi de encontro ao arame que, com o impacto, fez de mola e atirou-o novamente ao chão. Ao vê-lo no chão a coçar o peito da verdascada do arame, corri para ele já arrependido da situação que criei. Porém com o ruído da corrida que eu fazia ao roçar na ramagem das vides, ele deve ter imaginado que era o caseiro ainda em sua perseguição. Mais rápido que um foguete levantou-se sem olhar para trás e pôs-se na alheta com uma rapidez que me deixou descansado quanto à saúde do mafarrico. Ainda fiquei por momentos a vê-lo a correr ao longe até que o toque do sino no seu convite dominical, me lembrou do motivo que me trouxera até à vinha. Trepei para a cerejeira e tratei de encher o bandulho o mais rápido que podia pois estava na hora da missa.Com a pressa até os caroços marchavam.

Estava feliz, a consolar-me com as cerejas e com o cagaço que preguei ao capitão, o que serviu às mil maravilhas para a minha vingança da tareia que o meu pai me deu.

Após a barriguinha cheia, deu-me o arrependimento (e dava sempre). Então erguendo os olhos ao céu disse: - Senhor, se achais que roubar fruta para comer é pecado, dai-me agora uma dor de barriga.

Passado uns tempos, cheguei à conclusão que o facto de nunca ter tido uma dor de barriga, dever-se-ia à resistência da minha enfardadeira e ao Senhor ter mais que fazer do que dar ouvidos a um puto esgalgueirado e manhoso.

António Correia – Lisboa-2011

Lorde
Enviado por Lorde em 05/01/2013
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