Três Mosqueteiros
 
      Eu não sou um saudosista, daqueles que ficam focados no passado, esquecendo-se de que existe um presente para ser muito bem vivido, evitando sofrer as consequências no futuro. Mas existe aquele passado inesquecível e que, para todos nós, torna-se referência de vida. É nesse passado que está o cenário da nossa estória.
     
No Rio de Janeiro de mil novecentos e sessenta e um, tudo era bem diferente de hoje, como se vivêssemos num filme em preto e branco e em câmera lenta.

     
Nas ruas não haviam tantos carros como existem hoje, o trânsito era muito mais tranquilo, permitia que se andasse e, ao mesmo tempo, se observasse o que acontecia ao redor, os florões nas casas e até a decoração dos lindos edifícios da época. Os bondes, rangendo nos trilhos, transportavam, dependurados nos estribos, os passageiros que queriam se refrescar do calor do verão.

     
Foi nessa época que nós, garotos ainda, tendo passado para o semi-internato na Escola João Alfredo, fomos nos apresentar no começo do período letivo.

     
Com onze anos, cheguei meio amedrontado, mas fui enfrentar as feras.

Em todo o estabelecimento deveriam estar no mesmo regime de semi- internato uns duzentos rapazes e meninos, com a faixa etária variável de onze a dezoito anos, quer dizer, tínhamos meninos e adultos vivendo juntos.
     
Éramos admitidos aos domingos às oito horas da noite e saíamos para visitar nossos familiares nos sábados seguintes, às oito horas da manhã.

      O prédio de dois andares, com um grande pátio interior, abrigava na parte térrea as salas de aulas, a parte administrativa e um enorme refeitório. A cozinha e a lavanderia não ficavam à vista dos alunos, mas sabíamos da sua existência pelas refeições servidas e pelas roupas sempre bem lavadas. Na parte superior, em duas alas distintas — a dos rapazes maiores e a dos menores — ficavam os dormitórios.
     
Foi nessa época que conheci três pessoas que marcaram a minha vida.

      Wanderley, o Wandeco boa pinta, como ele mesmo se intitulava, lourinho de olhos verdes, mais conhecido como Gaguinho, que na primeira aula, ao responder à chamada, disse em alto e bom som: ― “Pre, pre, pre... presente!”. Ninguém ousou sequer rir, porque o professor tinha a fama de severo. Sorte a dele!
     
Ary era franzino e pequeno, de longos cabelos imitando os artistas populares que, na época, começavam a galgar os degraus da fama: Roberto Carlos e Wanderley Cardoso. Era mais uma vítima da polimielite, a paralisia infantil e, por causa disso, sua perna esquerda era defeituosa. Seu apelido era Manquinho. Ele ria quando o chamavam assim e, dando um arranco com a perna direita, dizia: ― “Deixa que eu chuto!”.

     
Mario Moreno era um mulato com jeito de malandro, muito vivo e inteligente e que, por ter exposto sua opinião numa discussão em grupo sobre música popular, em que o enfoque eram as músicas de Noel Rosa, ao dizer que compositor bom mesmo era o Cartola, ficou conhecido por esse apelido, Cartola. De tal forma incorporou o apelido à sua personalidade, cantando sempre as melodias do seu compositor preferido, que até mesmo os professores o chamavam de Cartola e ele se orgulhava disso. Cartola era deficiente visual, usava aquelas lentes grossas de fundo de garrafa e, sem elas, não enxergava patavina.

     
Os três logo se identificaram e sempre andavam juntos, por isso foram chamados de Três Mosqueteiros.

Numa aula de canto orfeônico, que era obrigatória na época, enquanto a professora separava os alunos de acordo com tonalidades de vozes, sentindo que seria discriminado, Wanderley, o Gaguinho, adiantou-se e disse:
      ― Eu sei... eu sei... eu sei can... cantar, professora...
      Foi uma gargalhada geral e ele se justificou: ― O Nel... Nel... son  Gon... Gon... Gonçalves também é... é... ga... ga... gago...
      E começou a cantar a canção com que Nelson Gonçalves fazia sucesso, “Boemia”.
      Uma bela voz, modulada, linda, surgiu sem uma ponta de gagueira e, quando acabou, todos aplaudiram de pé. Desse momento em diante o coral ganhou mais um barítono.
     
Numa outra feita, Ary, o Manquinho, durante uma aula de educação física, foi posto à parte pelo professor e reclamou:

      ― Quero ser tratado como igual a qualquer outro, ser avaliado como os outros serão, isso que tenho não é doença, já foi doença. ― E dali para a frente enfrentou todas as aulas seguintes sem nunca reclamar. Foi um exemplo de superação dificilmente visto. Nos exercícios de barra foi um dos melhores alunos da turma, dando inclusive o giro gigante, que poucos conseguiam fazer.
     
O meu amigo Cartola, por quem até hoje guardo um carinho especial, alistou-se para aprender um instrumento na banda de música da escola e, além de tocar os dobrados, o que era a tradição, começou a tocar as músicas populares de Noel Rosa, Nelson Cavaquinho e, principalmente, de Cartola, seu preferido. Seu instrumento era o sax mas, depois de algum tempo,  tocava também clarinete, flauta e diversos instrumentos de sopro. Depois de formado foi trabalhar à noite e era sempre encontrado nas boates, onde fazia parte de uma orquestra e, bem depois, quando já era casado e tinha filhos, formou-se em maestro.

     
Havia na revista Seleções da Reader’s Digest uma seção que se chamava "Meu Personagem Preferido", na qual eram citadas as estórias de pessoas marcantes. Os meus personagens preferidos são os Três Mosqueteiros,

exemplos de superação que, para nós, seus colegas, foram exemplos de vida.
     
Há tempos atrás encontrei Wanderley, lembramo-nos dos nossos tempos de escola, dos nossos amigos de turma; rimos das muitas trapalhadas dos jovens que éramos, lamentamos algumas perdas e, lá pelas tantas, me toquei que ele não gaguejara em nenhum instante e, meio sem jeito, perguntei-lhe:

      ― Desculpe, Wandeco, mas você sarou da gagueira?
      Ele, pego de surpresa, teve uma recaída:
      ― Foi.. foi.. foi... com a ho... ho... homeopa... patia.
      Demos muitas gargalhadas.