Era pura cor em sua dor.
Luzia estava nas ruas já há algum tempo, sempre fugitiva do conselho de menores. O que gritou atenção naquela criança era um sorriso que ela estampava no rosto como se fosse feito a mão. Era como uma pintura dessas com cores de Kahlo. No seu corpo marcas de violência, ela jamais quis adentrar nos detalhes desse assunto, a única coisa que sabia até então é que seu pai a usava como objeto sexual todas as noites que chegava embriagado. Logo descobri também ser esse o motivo da sua fuga pelas ruas daquela cidade. Luzia tinha apenas dez anos de idade e talvez já tivesse percorrido um mundo de dor maior do que eu já havia sentido nos meus vinte anos de vida.
Na conversa meramente informal descobrimos duas coisas em comum, a primeira é que Luzia amava música, e eu fazia música. E a segunda é que sua cidade natal era a mesma que eu residia atualmente. A mesma cidade que me acolhera naquele ano, foi também a mesma que expulsou Luzia, sem as mínimas condições de sobrevivência - em todos os sentidos – e sem dar nenhuma chance para isso.
Antes que eu confessasse esse nosso segundo ponto em comum, ela me certificava de que teve de sair da capital para uma cidade menor, porque seria mais fácil de fugir do ‘camburão’ como ela chama o conselho, e por aí nós tiramos o porquê dessa imagem do órgão que deveria prestar apoio. Confessou também que não tinha feito planos para sua rota, porém a única carona que conseguiu, em troco de uma relação sexual, foi para a cidade que eu nasci, e a que presenciava agora esse nosso diálogo.
Repito, Luzia tem apenas dez anos de idade, e o único documento que carrega no seu bolso me certificou disso. Ela conversava normal, como se quem contasse uma história qualquer. Não era possível notar arrependimentos, traumas, tristezas. Era como se ela tivesse se conformado com o que um padre lhe falou num dia desses que segundo ela, estaria precisando de conselhos. Ele disse que ela havia nascido pré-destinada a viver naqueles modos, e que teria apenas de aceitar e tentar fazer o bem ao próximo. Mas aí com uma risada irônica no canto da boca, pergunto-me, alguém se lembra de fazer o bem a ela? Esse padre em pleno século XXI, sendo ainda guiado pelo calvinismo, foi capaz de tentar fazer o bem ao “próximo” também? Ou é mais fácil atirar uma culpa e esperar a morte para curá-la? Fico até sem respostas para todas essas perguntas, porque de fato, eu preferia nem ter que fazê-las, preferia que elas nem existissem. E não é só a minha preferência, elas não deveriam existir.
Eu não estava mais numa conversa, era como se eu vivesse a dor daquela criança, mesmo que não demonstrada. Não queria mais sair dali, não queria mais deixar Luzia sozinha. Só que discretamente, percebendo meu apego, ele me avisou que já tinha que ir. Meus olhos não suportaram. Luzia com toda sua sinceridade pediu que não a forçasse ser chata comigo, e que não tentasse impedi-la de ir embora. Segundo ela, não iria mais vê-la.
Mas ela era pura cor em sua dor, e não me deixou sem explicações.
Explicou que jamais havia conseguido conversar com alguém sobre tudo que ela viveu, que sempre procurou ignorar todas as pessoas, já que sentia o mesmo tratamento vindo das mesmas. Não deixando de ter apenas dez anos de idade e da sua inocência de criança, embora quase que já toda consumida, disse que não entendia o ‘tempo’ que me permitiu estar com ela, mas que sentia no fundo que eu tinha algo de especial. Deu-me um apertou de mão, não controlei minha emoção e a puxei para uma despedida mais forte, e num abraço ela escapou de meus braços e se foi.
Talvez carregue essa culpa comigo de não ter feito nada, de não ter falado mais, de não ter tentado reverter o que a vida não estava fazendo por Luzia. Mas de fato era como se ali fosse um anjo, que chegou para abrandar aquele silêncio que existia em mim, e que mesmo assim eu vivia a reclamar. Foi rápido, foi como um sentimento, não deu para apalpar, apenas para sentir.
Com Luzia eu aprendi uma das lições mais importantes da minha vida, que sorrir a dor, a transforma em cor.