Pusilânimes
Trinta metros da rocha até a água. Júlio César hesitava. Sentados na beira do poço os amigos açulavam-no em coro:
-Pula! Pula!
Não era seu primeiro grande salto, mas pela primeira vez a altura alfinetou-lhe o equilíbrio. Na fração de segundo antes do impulso algo deslizou ante seus olhos. Medo não; aos vinte e oito anos, o empresário calculava perdas: o conversível que acabara de comprar, o contrato fabuloso recém-assinado, o casamento com Amanda dali a uma semana, a lua-de-mel em Miami...
Bobagem - sacudiu a cabeça. E saltou.
Amanda fechou os olhos. Não temia pelo futuro marido; o poço era fundo, e ele nadava bem. Apenas receava uma cena desagradável: ambulâncias, retirada do corpo. Teria de mostrar pesar. Júlio César fora seu único namorado, mas alguns anos passados consumiram boa parte de seu ardor pelo casamento. Precisava dele apenas; deixaria a casa dos pais - um alívio - e teria a escorá-la um jovem bem-sucedido e promissor. Mas talvez fosse até bom...
Isso Amanda entreviu, e prendeu a respiração. Três segundo de silêncio e tensão, até que, como um peixe, Júlio César subiu à tona e explodiu em um urro primata, que ecoou entre as pedras da cachoeira, batendo no peito como um selvagem.
Os saltinhos e palminhas de Amanda eram de tranquilidade, apesar da histeria. Os amigos pasmavam enquanto o saudavam:
- Cara, você é doido! Quanta coragem!
O peito estufado, e controlados todos os calafrios, Júlio César aproveitou a ciranda em torno de si, agarrou Amanda pela cintura e pespegou-lhe um beijo voraz. Vivas emocionados.
A igreja resplandecia com decorações e flexes. No altar, embalado pela esclerose em fabordão do padre, Júlio César estava hipnotizado por Valéria, a irmã caçula de Amanda.
Como era bela, jovem e misteriosa! A boca suavemente encarnada, os cabelos em trança única, do lado esquerdo, o vestido com as costas à mostra! Divina ninfeta! Atento a um muxoxo imaginou que a menina estaria incomodada vendo-o casar-se com a irmã. Seria verdade? Teria tamanha sorte? Encarava-a sequioso de pistas, quando a cotovelada de Amanda, discreta mas certeira, fê-lo expectorar a anuência:
- S-sim!
Algumas madrinhas franziam interrogativas sobrancelhas; alguns padrinhos contraíam os lábios na vã tentativa de disfarçar sorrisinhos. Amanda simulava ignorar, de fato mais atenta ao furor que o próprio vestido causava – “foi o mais caro!” foi a resposta que soletrara a uma amiga curiosa e detalhista – e a perscrutar quantas eram as que seguramente a invejavam naquele momento, fosse pelo vestido, fosse pela suntuosa cerimônia.
Fulgêncio Torres era uma águia. Conhecia bem a própria filha e farejava o tipo de homem que despontava do genro. Matuto sagaz, saíra há tempos da roça e aprendera a ganhar a vida farejando a vontade alheia. Na festa que se seguiu, quando o casal veio cumprimentá-lo, abraçou demoradamente a filha e sussurou:
- De tudo eu já vendi, minha filha, menos tranquilidade. Eu te abençôo, como sempre, mas pensa bem. Teu velho pai ainda serve para muita coisa...
A emoção do momento extorquiu de Amanda as lágrimas que, para seu pai, denotavam compreensão do aviso e da oferta. Ela, porém, vagamente captara algumas palavras, e tinha pressa de confraternizar com as amigas ávidas por comentar os bonitões e as desmazeladas.
Após a valsa dos noivos, Amanda dançou com um dos padrinhos. Recostado a um canto, costumeira precaução contra pequenos exageros etílicos, Júlio César contemplava a cena, mas não mirava a esposa. Corria os olhos pelo salão e sorvia o espanto e a inveja dos outros homens como se fosse o sangue de vítimas apatetadas. Julgava que todos os olhares tivessem um só foco, Amanda, por todos desejada e sua inteira propriedade. Fruía o máximo prazer de imaginar a mulher às mãos e todos aqueles homens aos seus pés.
Então deu com os olhos de Valéria cravados em si, e convenceu-se de que sorria com a ponta da língua entre os dentes. “Essa dança é nossa!”, pensou, e atirou-se pelo meio do salão. Rapidamente Amanda notou os cambaleios do marido, e prendeu a respiração quando teve certeza da direção que esboçavam. De um átimo ponderou prós e contras de um escândalo, e decidiu aguardar.
Ao aproximar-se de Valéria, que arregalava pura apreensão, Júlio César encarou-a, escorou-se no espaldar da cadeira, e desatou a gargalhar como um possesso. Amparado pelo sogro, que se controlava para não deitar-lhe as mãos ao pescoço, fez melhor uso da escora e rápido adormeceu.
Em Miami a ordem era comprar. Toda a parafernália moderna, se chamativa, era seduzida pelo cartão, corifeu da orgia. Em nenhuma das lojas em que entravam seria visto casal mais harmonioso. Estafados e afogueados, retornaram ao hotel para gozar o prazer da posse. Enquanto desembrulhavam uma a uma as quinquilharias, Júlio César não se conteve e soltou o chiste algo sem inocência:
- Igreja, vestido, apartamento de cobertura, além dessas compras todas... Você está me saindo cara, não?
- Como é?
- Brincadeira, amor. E tentou abraçá-la, mas ela se esquivou, felina:
- Não imaginei que dinheiro fosse problema para você. Não vou ouvir outra dessas...
Puro blefe, mas de jogador ardiloso. Nunca haviam faltado a Amanda oportunidades para rompimento, mas ela jamais o fizera. Por outro lado era a primeira vez que Júlio César fazia insinuações sobre dinheiro, arranhando notas de orgulho em grossa corda pragmática. Mediram-se um segundo. Ele esboçou abraçá-la, e desta vez não encontrou resistência:
- Calma, desculpe-me, foi apenas brincadeira. Não repito.
Manteve a palavra, sem deixar, porém, de calcular os gastos daqueles dias, degustando-os; Amanda era linda, e os eletrônicos, espetaculares.
Terá sido necessária muita perspicácia para detectar com que volúpia Júlio César certificou-se mais uma vez de seu domínio sobre a esposa? Quanta audácia seria preciso para altear-se diante de tal fragilidade? Não que apreciasse sabê-la vassala, nem que deliberadamente o fizesse; era antes ímpeto que decisão, passageiro qual um prurido a que se cravam as unhas. Algo desajeitado, não mais que brincalhão. Mas vendo-se em terra estranha, longe de todos os conhecidos, seus pensamentos arrepiavam-se ao entrever quão mais delicioso seria tê-la assim à sua mercê quando de volta ao Brasil, onde ainda por cima se esbaldaria com a inveja alheia. Coisa de garoto.
Ao longo dos dias que se seguiram ao retorno, Amanda mal conseguia focar-se no trabalho. Recordava episódios semelhantes sempre que um intervalo permitia; sondava sutilmente as colegas sobre seus relacionamentos, limitando-se a encaixar perguntas oportunas em contextos propícios, sem jamais dar a entender quaisquer indícios do próprio desconforto. Cotejava respostas sem encontrar soluções. Não chegara a tornar-se soturna, mas havia muito vinha calada. Qual jamais fizera outrora, desejava ponderar com cautela.
Na noite em que comemorariam um mês de casados Júlio César entrou no apartamento com inusitada euforia; arrancada da TV, Amanda sobressaltou-se no sofá.
- Você não vai acreditar! Lembra do Pereira? Daquele contrato?
- Boa noite para você também. Pelo visto, boas novas, hã?
- Pois é, cinco milhões! Fechou com a gente e ainda garantiu outros cinco para o ano que vem, se gostar do serviço! Não é demais? – espalmava a mão e arregalava a estupidez.
- Que bom, querido. Você merece!
- E veja só o que eu trouxe para comemorar...
- Comemorar?...
- Como não, baby? Você sabe quantas empresas como a nossa assinam um contrato desse tipo com nem um ano de funcionamento? Isso merece muita comemoração!
Não esperou resposta, sequer pousou os olhos na mulher. Com um gesto de cinema vagabundo, sacou da valise um embrulho mediano e, ajoelhando-se, depositou-o pomposo nas mãos dela. Amanda quase se emocionava, julgando que ele houvesse lembrado, até ouvir:
- Você ficará uma deusa! Suas amigas morrerão de inveja! Merecemos!
Aberta a caixa o colar de diamantes cintilava quase ofuscando. Estupefata, Amanda quedou perplexa.
- Não gostou? Veja bem: são diamantes legítimos! Você tem nas mãos um carro de luxo, pode apostar.
Pouco faltava, e ele se desincumbiu da tarefa. A custo ela abafou a explosão; decantado o ódio a força, subitamente entendeu que o caso era perdido, e tirar o máximo de vantagens escancarava o melhor a fazer. Desvaneceu-se a última névoa de amor; é possível que ele nem pensasse mais em Valéria, já certamente esquecida por outra. Tanto fazia. Machucada a fundo, Amanda perseguia a desforra, lúcida sobre o ponto fraco do marido.
- São lindos. Usarei diamantes de hoje em diante. Você é um amor!
A partir daquela noite, se mantinha olhos e boca confinados entre aparência e necessidade, aperfeiçoava a arte de valer-se das efusões do marido para acumular patrimônio. Começou por aceitar, passou rapidamente às trocas e, em menos de um ano, negociava em pé de igualdade. Dominou a linguagem do parceiro e foi abocanhando mercado.
À à mesma proporção que enriquecia, cresciam também o sentimento de segurança e os deslizes de Júlio César, feliz embora um tanto aborrecido com a seráfica resignação da esposa. Um dia chegou em casa e encontrou-a em prantos e no escuro, e deixou escapar:
- O que você tem, afinal? Nem um ano de casados e mal dormimos juntos... Só falta agora uma depressão idiota; eu mereço... Parece que não faço nada por você; nem para os presentes você liga mais...
- Choro de felicidade, querido. Estou grávida.
- G-grávida?
- Sim.
Com o mais plácido dos sorrisos encarou o marido, cuja vista começava a avermelhar e umedecer. Júlio César era todo sentimento. Ela, então, sopesando o efeito que provocaria, sublinhou cada sílaba:
- Mas não é seu, não se preocupe... É do Cardoso.
Frisou o nome do sócio dele saboreando o choque de cada músculo do marido aterrado. Arrematou com uma estocada de punho:
- A propósito, três quartos da empresa agora são meus: cinquenta por cento dele, mais os vinte e cinco que me caberão depois do divórcio. E, claro, a partir de amanhã você trabalha para nós.
Do quarto saiu Valéria, que viera ajudar com as malas. Sem conseguir mover-se Júlio César ainda as ouvia rindo à espera do elevador:
- Otário...
A porta do apartamento se fechou atrás das duas. Ele acompanhava o ruído das falas que se abafava e a descida do elevador. Aos poucos os lábios abobalhados se alongaram rumo às orelhas, até explodirem numa gargalhada satânica. Júlio César mal podia esperar para atirar-se ao telefone:
- Alô. Cardoso? É o Júlio. Sim, ela acabou de sair. Agora é como combinamos. Sim, claro, amanhã acertamos. Aquele abraço, meu caro, obrigado novamente...