Dia de Vento
Ventava muito e noites com vento sempre lhe faziam lembrar de sua juventude e de Érico Veríssimo : “Dia de vento, dia de mortos”. Mas, os mortos pareciam distantes aquela noite. Sentiu que o vento lhe trazia esperanças e que algo importante estava para acontecer.
Sorriu timidamente e por um momento pensou que era novamente a menina de óculos com os pés mergulhados na piscina a devorar outro livro de estórias, sonhando com romances e aventuras tão distantes da sua vida. Nesta época decidiu que iria escrever estórias como aquelas que lia e que suas estórias iriam ajudar a criar um mundo melhor através das mensagens que deixariam. Sonhou muito com isto e, um belo dia, a menina acordou com trinta anos...
Foi um misto de surpresa, desespero e alegria. Surpresa pela rapidez com que sua vida passava, desespero porque o mundo é cruel com as mulheres, que aos trinta já são coroas (concepção masculina de sites de sacanagem, por exemplo) e alegria, porque ainda acreditava estar viva o bastante para construir uma nova vida.
Se maquiou cuidadosamente, queria que esta noite fosse inesquecível: nela não havia lugar para a menina de óculos, mas para a mulher decidida a desafiar um destino previsível.
Sorriu ao se ver tão plena no espelho. O espelho não era dos melhores, mas pelo menos dava para se ver inteira. A casa era simples, mas sua determinação era inabalável: nem a pequena goteira que escorria pelo quarto seria capaz de detê-la naquela noite. Sabia não teria outra chance como aquela.
Vestiu o vestido verde, que lhe iluminava o semblante. Escolheu a bolsa e os sapatos. Olhou novamente para o espelho em busca de uma aprovação. Sim, estava bonita: sensual, mas não vulgar. Ele não resistiria, se a visse.
Viu as horas e percebeu que tinha pouco tempo. Ele chegaria em breve, discreto e misterioso como sempre. Traria rosas? Falaria coisas macias nos seu ouvido, desmanchando as mechas que arrumara com tanto cuidado? E ela deixaria que ele a conduzisse novamente àquela cama, esquecendo-se de todos os seus sonhos? “Desta vez, não”- pensou convictamente.
“Não estarei mais aqui quando ele chegar”. Apressou-se com a mala. Levaria apenas o essencial: algumas roupas, dinheiro, documentos. Olhou o retrato ampliado na parede: uma foto mágica de um momento inesquecível, mas desviou rapidamente o olhar, nada, nem ninguém a impediria de fugir daquele lugar e daquela vida. Seria novamente a menina de óculos deitada na cama a escrever estórias de amor.
O tempo escapava por entre seus dedos, ele chegaria em breve, tinha que se apressar. Se ele chegasse não conseguiria ir e sua vida permaneceria para sempre presa àquele homem.
Pegou a mala, a bolsa, apagou a luz, conferiu o bilhete de despedida e se dirigiu à porta da rua. Segurou firmemente a chave, mas parecia não ter forças para girá-la. Os olhos aflitos fitavam o relógio da cozinha. Ele iria chegar logo e, desesperada, tentou novamente abrir a fechadura. Suas mãos não lhe obedeciam, sua pernas fraquejaram e seu corpo exausto escorregou rumo ao piso.
Já não podia fazer nada, sua vida parecia selada à dele. Sorrateiramente a primeira lágrima esboçou-se pelo canto dos olhos, seguida de diversas outras e, pela primeira vez, teve a certeza de que havia um destino já traçado e que sua vida fugira completamente do seu controle.
Teve ainda tempo de ouvir os passos na escada, antes da porta se abrir e sua vista se turvar..