O fim do mundo

É, o mundo não acabou.

Tobias, com a cabeça pesada de uma ressaca homérica, levanta-se no sábado, às 12h12, e tudo está igual ao dia de ontem. A torneira da pia da cozinha pingando ininterruptamente, a gritaria das crianças brincando na piscina do condomínio na maior arruaça, o filho metaleiro do 903 ensaiando em carga total, e ele mora no mesmo apartamento bagunçado de todos os dias. Quer dizer, não todos os dias, porque dona Matilde faz a faxina duas vezes na semana.

Ele acreditou que realmente o mundo acabaria na sexta-feira, dia 21.

O dia 21 veio.

O dia 21 ficou.

O dia 21 passou.

E agora o calendário marca o dia 22 de dezembro de 2012, e nadica das coisas ruins previstas aconteceu.

Quer dizer, tudo de ruim aconteceu, mas foi para Tobias: em primeiro lugar, depois de tomar alguns copos de uma batida chamada “pau na coxa”, ele deu um beliscão na bunda e lascou um beijo, de língua, no estilo desentupidor de pia, na secretária gostosa do chefe.

Não teria mal nenhum, se a criatura fosse desimpedida, mas corre à boca pequena que ela é teúda e manteúda do chefe, e quem se mete no terreiro alheio, principalmente quando o alheio é o chefe, é como se plantasse vento para colher tempestade.

“Maldita hora em que fui à festa de confraternização da firma”, pensa Tobias ao se olhar no espelho do banheiro e constatar uma gravata florida amarrada em sua cabeça, intensificando a dor que sente no crânio.

Tobias não pode garantir de quem é aquela gravata horrorosa. Ele jura de pés juntos que dele não é. Mas a infeliz está lá, e se ele chegou em casa e – o pior de tudo – dormiu com o bendito acessório masculino na cabeça é porque as coisas foram muito mais piores de ruins do que ele pensava.

“Ô, vida!!”, queixa-se.

Ao tentar utilizar o vaso sanitário, não pode: ele estava todo enxovalhado. Tobias supõe que, ao chegar em casa, tenha chamado o Raul, já que o entorno do vaso está todo emporcalhado. Uma nojeira só.

Quando está saindo do banheiro, buscando o outro, o da empregada, Tobias passa pela sala e lá encontra uma mulher esparramada no seu sofá. Ele chega perto e sacode a criatura, mas a garota aparenta ter morrido, de tão profundo que é o seu sono. A única coisa que mostra que ainda vive é o seu ronco, ainda mais potente do que a bateria do filho metaleiro do 903.

Tobias chega mais perto, para ver se reconhece a criatura, e constata, para seu espanto, que é a estagiária míope, que usa aparelho nos dentes e que tem pernas finas. Ela trabalha no setor de contabilidade, e todos a chamam de senhorita chata e certinha.

A senhorita chata e certinha não acorda nem por reza brava, por mais que o dono do apartamento a chame.

Ele insiste.

Insiste.

Insiste.

Insiste.

Desiste.

Nada vai acordar a criatura mesmo, nem uma chuva de meteoritos em chama, sequer o alinhamento de todos os planetas do sistema solar, ainda que isso tudo acontecesse ao mesmo tempo. A criatura ronca feio, e uma baba gosmenta escorre pelo canto da sua boca aberta.

“Como é que pode caber tanto ronco numa criatura tão franzina?” – questiona-se, enquanto caminha de volta para o banheiro.

Um banho deve melhorar o seu astral, porque o mundo não acabou, mas o hall de entrada do inferno Tobias deve ter subido, porque um calor descomunal impera; é como se o Tinhoso tivesse saído das profundezas e vindo morar na Cidade Maravilhosa. Tobias já não aguenta mais.

“Aqui só temos duas estações: a do verão e a do inferno”, sentencia, fazendo-se de vítima.

A água fria caindo no seu corpo é uma bênção, e ele quase sorri feliz. Não concretiza o sorriso porque a campainha da porta berra insistentemente, como se alguém quisesse tirar a família inteira da forca. Com tanto barulho, a dor de cabeça, que parecia querer ir embora, volta com carga total. Tobias, atrapalhado, sai do chuveiro com pressa de atender logo à porta, mas escorrega no tapetinho do banheiro, bate com a cintura no bidê e cai de bunda no chão.

“Já falei pra dona Matilde tirar este tapetinho horroroso daqui, mas ela acha que o apartamento é dela, e não meu. Que merda!”, reclama, xingando até a décima descendência da diarista.

A senhorita chata e certinha continua esparramada no sofá, sem se mexer um milímetro sequer. Tobias se atrapalha na hora de abrir a porta, porque o barulho infernal da campainha continua arrebentando seus tímpanos. Quando consegue destrancar a porta, abre-a de supetão e encontra ali parado em sua frente o ex-cunhado, Pedrão, junto com a mulher, o encapetado do Júnior e um carrinho contendo dois bebês gêmeos, de um ano.

– Cunhado! – grita, feliz, Pedrão, enquanto lhe puxa o corpo para dar-lhe um abraço de urso. O ex-cunhado e a família logo entram, sem ser convidados, rindo e fazendo mais barulho. Atordoado, Tobias não consegue falar nada, enquanto Pedrão não consegue deixar de falar.

– Eu, a patroa e as crianças decidimos vir passar o Natal e o Ano Novo com você. Afinal, o seu casamento com minha irmã acabou, mas você é meu brother e não vou deixar você passar essas datas festivas sozinho, não. Saímos lá de Botucatu para vir lhe fazer companhia, e nem precisa agradecer! – garante o ex-cunhado, já colocando as malas e as cuias na sala de Tobias.

O planeta pode não ter acabado, mas o mundo de Tobias acabou desde ontem.

Carla Giffoni
Enviado por Carla Giffoni em 22/12/2012
Reeditado em 26/12/2023
Código do texto: T4048420
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