Velhinho do pó!


Sempre pensei muito positivamente. Embora não sendo ingênuo, sempre confio na minha capacidade de resolver problemas, ou melhor, por não ficar pensando neles, não imagino que eles possam acontecer comigo. Assim tem sido, vivo numa cidade violenta mas nunca fui violentado, nunca sofri assaltos, enquanto muito dos meus amigos e parentes o foram.
Não vivo me preocupando, isto é, me ocupando das coisas antecipadamente,

Todo ano faço uma viagem ao Canadá para visitar minha filha e netos, assim como também viajo para outros destinos, e como tenho viajado tantas vezes para o exterior sem que nenhum incidente tivesse me acometido, isso passou a ser uma rotina para mim.

Como as famílias de brasileiros radicados no Canadá sabem que sempre viajo, durante o inverno brasileiro e consequentemente verão canadense,  - algumas vezes fui no outono e primavera também, mas nunca viajando no inverno canadense, - sempre aparecem os pedidos para enviar presentes para seus parentes lá radicados. O inverso também é verdadeiro, e algumas vezes trouxe encomendas para o Brasil. Quem tem familiares no exterior, conhecem bem essa prática.

Numa ocasião, quando estava a preparar minha mala, e nessa oportunidade iria viajar sozinho, minha filha me enviou um e.mail com uma série de pedidos inusitados: massa para preparo de pão de queijo, fécula de mandioca para fazer biju, alguns temperos típicos daqui, e um pó de maracujá desidratado para o preparo de doces.

Dei uma corrida no mercado e comprei tudo o que ela pedira, com exceção da fécula de mandioca. Esse produto só foi encontrado à varejo, numa casa de especiarias e o comerciante o embalou em sacos plásticos, sem rótulo ou qualquer indicação do que seria. Quando cheguei em casa com aquele pacote, logo me alertaram, vai ser confundido com cocaína!

Eu e o meu pensamento positivo, logo pusemos essa hipótese fora de cogitação, são coisas distintas e a única coisa em comum é que os dois são pós brancos, refutei.

Embalei tudo com plástico bolha, de forma muito bem protegida, entre as garrafas de cachaça para os biriteiros do norte, fechei as malas e fui em frente...

Ainda no Aeroporto Tom Jobim, no Galeão, no Rio de Janeiro, quando todos já haviam se acomodado em suas poltronas , o avião já com a porta fechada, ela novamente se abriu e anunciaram:
- Sr. Fulano de Tal, por favor, se apresente. E era o meu nome...
Lá fui eu para me apresentar à comissária de bordo, que me indicou para acompanhar um cidadão e depois de subir escadas, descer escadas e passar por diversos corredores, paramos em um enorme pátio onde a minha mala estava separada e um agente de terno e gravata, me arguiu:
- Senhor, faça o favor de abrir sua mala... o que tem nesse pacote branco, envolvido com plástico bolha?
- Amido de mandioca para fazer biju...
-Ahn... então está explicado, não há problema, pode retornar para o seu assento...

Quando retornei ao avião, depois daqueles longos quinze minutos de atraso, senti no ar aquele muxoxo:
-Uh!

O voo transcorreu em normalidade até que a comissária de bordo informou:
- Senhores passageiros, estamos em procedimento de pouso no Aeroporto Kennedy em Nova Iorque, as pessoas que estiverem em trânsito deverão retirar suas malas e dirigirem-se para fazer a vistoria alfandegária.

Identificada a esteira com o número do voo e companhia aérea, esperei até a chegada das minhas malas, coloquei-as no carrinho e segui as setas em direção à alfândega.
Passei por uma sala em que o cachorro policial farejou as minhas malas, conforme também farejou as malas dos outros passageiros e passamos para a sala das vistorias.

Um cidadão nada simpático, como a maioria dos agentes de alfândegas, apontou com o indicador o lugar onde deveria colocar as minhas malas, sobre o balcão.
Naquele momento questionei se o Serviço de Inspeção Alfandegária promovia algum curso de descortesia aos seus agentes, porque até hoje ainda não encontrei agentes simpáticos. Eles tratam os cidadãos, em qualquer parte do mundo, como se, em princípio, fossem infratores.

À duras penas consegui levantar e colocar as duas malas sobre o balcão e enquanto providenciava a abertura do cadeado da primeira, a outra já tinha sido arrombada pelo Mr. Simpatia. Como simpatia é quase amor, ele já estava revirando minhas blusas e cuecas e descobriu o objeto dos seus desejos, embrulhado no plástico bolha:
-What is this? 
E me mostrou o pacote, com aquele sarcástico sorriso de vitória...
- Starch, respondi, referindo-me ao amido.
- Is'nt starch...
- Starch of mandioca, respondi soletrando man di o ca !
Sem muita certeza, acrescentei... cassava...
Ele ignorou o que havia dito, e perguntou para uma agente hispânica que estava ao seu lado:
- What is mandioca?
- Manyoca, ela respondeu...
Enquanto isso, ele já havia furado o saco, apalpou o pó com ares de sapiência, e perguntou para os demais agentes que também o cheiraram:
- Starch?
- Yes, responderam quase em coro os demais...
Mr. Simpatia olhou para o pacote de maracujá em pó, e desconfiado, perguntou:
- And this?
- Passion Fruit, respondi secamente. Acredito que ele deve ter pensado ser uma sinonímia do viagra e não perguntou mais nada...

Eles me liberaram para que apresentasse meus documentos de entrada no país e liberaram as malas para o voo de conexão para o Canadá.
Quando cheguei ao aeroporto de Quebec é que pude avaliar a extensão do estrago , a mala fora fechada com fita adesiva, as roupas estavam saindo pelas frestas, mas o pó estava lá no saquinho protegido pelo plástico bolha... Foi então que o meu neto começou a me chamar de velhinho do pó!