A testemunha
Não tem como nem porque enlouquecer, o detetive Nilton pensou, segundos antes de quase enlouquecer.Então era isso, Acabara de conversar com o paramédico Esteves, ainda internado no hospital da PM, após ter sido baleado na barriga. Afinal, o que houvera? Um garoto na favela fora fuzilado e morto, e a imprensa estava caindo de pau em cima da corporação. A perícia do IML iria esclarecer de onde saíram as balas que acertaram o garoto. Este, de uns oito anos de idade caíra alvejado por mais de 20 tiros de grosso calibre.
O paramédico Esteves o olhou com uma fáscies de dor. Não falou nem uma palavra, mas foi achado caído junto ao garoto. Estaria envolvido? Saberia de alguma coisa. Esteves permanecia internado, em observação, apesar de estar fora de perigo. Era uma forma de protegê-lo. Como estava com um colete a prova de balas, o tirambaço na barriga apenas o derrubou e deixou um círculo roxo, como se tivesse levado uma forte pancada.
O detetive Nilton era policial civil, designado para investigar o crime, se é que um ato de guerra pode ser considerado crime. Mas a sociedade pressionava, os jornais faziam editoriais e o chefe de polícia achou que tinha a obrigação de investigar.
- Esteves, você precisa ajudar.É a única testemunha viva, diga aí, quem matou o garoto? – disse Nilton sentindo a raiva subir à cabeça. Foi você, não foi?
Esteves virou a cabeça com os olhos vazios. Estava em estado de choque após tiroteio. Nada falou. Era um bombeiro que ingressara na escola de medicina e que conseguira transferência para o trabalho de paramédico, trabalhando em plantões espaçados. Quando não estava trabalhando ia à escola, tentando levar o curso, apesar da dificuldade.
Naquele dia estavam subindo o morro, após a invasão das forças da polícia militar. Seguindo os procedimentos, os paramédicos só entravam com segurança total, após o domínio completo do terreno. Subiam lado a lado alguns paramédicos, procurando eventuais feridos. Estavam guarnecidos com uniforme completo, colete à prova de balas, capacete e radio comunicador.
Esteves subia atento a corpos ou rastros de sangue. Pelo rádio escutou a advertência:
- Sujeito hostil à direita, atenção, três horas, três horas...
Olhou para a direita e nada viu, apenas os barracos enfileirados.
Ouviu, de novo, a advertência:
- Olha aí, ô imbecil, sujeito hostil à direita, atenção!
Olhou novamente e viu um garoto de uns oito anos, de calção e sem camisa, saindo de um beco. O garoto sorriu. Em sua mão direita um objeto metálico brilhava. O garoto levantou a mão, e, imediatamente, Esteves ouviu uma rajada de fuzil automático. Sentiu a pancada na barriga e caiu desmaiado.
Agora que se lembrou, chamou o detetive e contou a história.
- Então foi o garoto que te baleou. Ele que era o sujeito hostil. Mas quem atirou no garoto?
Esteves não sabia, mas podia imaginar. Foi quem deu o aviso pelo rádio. Podia ser qualquer um que estava no alto vigiando. Podia ser até alguém do helicóptero. Sim poderia.
O detetive que contava tanto com o depoimento de Esteves se desiludiu:
- É, vamos ter que esperar o resultado da balística. A propósito, o garoto tinha um revolver na mão. Podemos provar que foi ele que atirou em você.
Esteves relembrou a cena. O garoto tinha um objeto metálico na mão. Mas ele estava seguro de que não era um revólver, era um carrinho de brinquedo.