Sorte no Jogo
 
Há dias não aparecia no trabalho e a razão era simples: havia ganhado o maior prêmio de sua vida. Estava milionário, pois que os números sorteados na noite daquele sábado coincidiram com os que estavam marcados em seu cartão de loteria. O trabalho, de que não gostava, e que o retirava da cama enquanto o galo ainda dormia, foi a primeira coisa que lhe veio à cabeça: “nunca mais a escravidão, estou livre” pensou com orgulho. A folga seria na quarta-feira, mas o domingo era dele. E bem merecido. Há quanto tempo não folgava num domingo!

– Você perdeu o horário, homem! – disse Jandira, espantada.

– Não estou bem. Além do mais, ando farto daquele restaurante. Depois dos desaforos que ontem ouvi do chefe … Não quero voltar para lá. É melhor que não, pois acabo lhe aprontando uma.


Mentiu assim à mulher. Queria ganhar tempo, já que ganharia uma nova vida. Esta incluía Roberta, sua verdadeira paixão. A traição não era recente; a paixão já o vinha assediando. E o que o não deixava consumir o desenlace era isso, exatamente: a falta de dinheiro. Precisava do estilo de vida abonado, vida social intensa, respeito e a garantia do amor de Roberta. Jogou fora uma dúzia de anos de um relacionamento que, se já não era as mil maravilhas, seguia pelo menos estável. Mas, ele não estava satisfeito; não conseguia se ver feliz ao lado de Jandira. A falta do entusiasmo dos últimos anos trouxe-lhe a desesperança. Esta fustigava o sangue do aventureiro que ainda lhe era vivo nas veias e esta conjunção levou-o às ruas. Em busca de novidades.

A saudade dos tempos idos de solteiro voltou a clamar. Até que encontrou Roberta. Escondeu que era casado. Viu nesta estratégia uma chance maior de liberdade, o que não funcionou. A amante que se julgava enamorada e exclusiva exigia do seu homem dedicação e compromisso. Correia fora pego desta vez sem apelação, pois, se confessasse poderia perder, não somente a mulher, que amava, mas também a outra, a quem enganava.

Passaram-se três dias e procuraram-no em casa. Não o encontraram. Jandira e o casamento de anos constituíam passado para Correia que fora viver com Roberta na Barra da Tijuca, onde passou a usufruir da suntuosidade que sempre desejou. Os dias idos de baixada fluminense ficaram finalmente para trás. Quadragenário, com dinheiro a lhe fartar e uma linda mulher na casa dos vinte, Correia perguntava-se o que é que a vida queria dele, visto que, o que ele queria, ela, de bom grado, lhe oferecera. Mas não passou do pensamento para a ação, ou seja, abertamente falando, largou o trabalho e não deu ouvidos à voz da alma que, no silêncio macio de seu travesseiro, lhe cobrava atitude. Se pensasse um pouco, compreenderia a razão de ter enriquecido ; que tudo tem um preço na vida. Até mesmo um prêmio de loteria.

Mas, preferiu que assim não fosse, infelizmente para ele. Roberta não suportou por muito tempo o tipo de vida que Correia passou a levar depois que enriqueceu. Foi correspondido no amor que sentia por ela, mas nem todo o dinheiro que possuía valeu a ele a vitória na manutenção desse amor. Equivocou-se ao julgar que, o que tinha em quantidade lhe garantiria o direito de adquirir tudo o mais em quantidade, inclusive o amor. Ela não aceitou. Deixou-o. Que ficasse com os seus milhões, mas que a deixasse viver o tipo de amor que merecia: sincero e dedicado. Correia quase perde a razão. Sofreu dias sem conta e sem limite para a bebedeira. Após semanas de solidão e angústia, procurou-a.

– Não tem volta – disse, resoluta. – Não quero um homem para ficar comigo e com dezenas de outros rabos de saia.

Correia não tinha argumentos. E a maior prova era a recusa em querer aceitar com Roberta uma união de fato. Se não queria casar, que pelo menos morassem juntos, isto salvaria as aparências. Mas a intenção dele era outra: queria auto afirmar-se; sem rotina e sem cobrança. Deu no que deu. Só agora percebera a mulher que perdeu. Rspeitou-o o tempo todo, tendo tudo para agir de modo contrário: a bela casa que ganhara, as jóias caríssimas e os olhares invejosos, mas também aqueles que a secavam de desejo.

Correia ainda insistiu. Com jóias, promesssas e muito mais conforto e regalias; tudo que o seu dinheiro pudesse proporcionar. E, ela sabia, não era pouco. Mas, não teve jeito, perdeu a mulher. E por pouco não perde também a fortuna em negócios obscuros nos quais passou a se envolver sem nenhuma experiência e assessorado de por um bando de interesseiros e sanguessugas. Porém, no meio deste joio, havia Clara, que viu em Correia uma boa alma e, logicamente, levando em conta sua situação privilegiada, tudo o que Clara acabou por demonstrar restringiu-se a uma autopromoção. E conseguiu. Clara fez parte da vida de Correia durante um bom número de anos, durante os quais arrancou dele não apenas gran de parte da sua fortuna, mas, e principalmente, sua saúde e o vigor e brilho de sua juventude. Correia já ia pela casa dos quarenta quando conseguiu livrar-se desta mulher.

Qual o saldo atual da vida desse sujeito? Diria que significativo, visto que, dois filhos homens, nascidos de Clara e um saldo bancário que, a despeito dos tropeços dos dias inglórios, situava-se ainda na casa dos milhões, não deixam de ser relevantes; tampouco desmerecem consideração. Daí para frente a quase totalidade do que aconteceu com Correia veio no rastro do comportamento passado cuja destemperança pavimentou a estrada que o levou ao fracasso.

Luis Augusto, calmo e concentrado, seguiu desde cedo, o caminho do bem. Não quis, e disto fez questão, aceitar, como Clemêncio, o caçula, as mordomias que o pai lhe punha nas barbas.

– Não sou tolo e tenho vistas – disse Luis Augusto, ao irmão, como um alerta de pessoa inteligente. – Quero sentir nestas mãos o roçagar de cada moeda que conquistar como fruto do meu empenho, sem me apoiar em facilidades. Não pode ser diferente, pois busco a felicidade com a riqueza e não apenas esta em detrimento da outra.

E assim fez. Cresceu na medida de sua convicção. Obteve da vida o que ofereceu a ela. Foi respeitado, projetou-se internacionalmente. Foi, por fim, feliz e vitorioso. Clemêncio, por outro lado, só deixou desolação. Já vão lá ver o que aprontou.

Se faz sentido a expressão, Correia comemorou o seu aniversário de cinquenta anos dentro de uma delegacia, pois ali passou todo o dia na tentativa de conseguir liberdade para o filho perdido nas drogas. Tantos conselhos lhe deu, mostrou o exemplo de Luis Augusto. Cobriu-lhe de todo aparato material, mas nada disso adiantou. Se ficasse apenas no vício o descaminho de Clemêncio, menos mal para Correia. É claro, sofreria, mas, com a esperança da reparação. Difícil. Demorada, porém, sempre possível. O caso, todavia era sério. Clemêncio ligou-se a uma rede perigosíssima de sequestradores, onde chegou por causa de uma rebeldia, deflagrada desde que o pai lhe cortara toda e qualquer mordomia.

– Se quer dinheiro, terá que trabalhar de agora em diante. – Pensou com isso, Correia, despertar no rapaz algum sentido de responsabilidade.

Era a terceira vez que destrancava o filho, Mas sempre a poder de muita generosidade, o que significava altas somas; tudo em nome da liberdade. Nunca chegou a ficar mais do que uns poucos dias enjaulado, porque sabia que não tardava a chegada do pai. Contudo, a vida de Clemêncio já estava desandada. Não demorou que cometesse outros desatinos, frutos de uma vida em perdição. Não quero roubar do leitor além de uns minutos a mais do seu tempo valioso. Se valho a sua atenção, aqui tem os fatos do jeito que ocorreram e que fiquei sabedor.

Ao ser Liberto e vendo que o pai realmente não mais lhe apoiaria financeiramente se não mudasse sua conduta, Clemêncio amargou a derrota. Uniu-se novamente à quadrilha para uma investida de todo ousada e surpreendente. A vítima: famoso e milionário magnata do ramo de álcool e derivados. Mexeu-se desta vez com gente poderosa e influente. Optou a família do empresário por não recorrer à negociação, mas aceitar a ação pronta da força policial. Combinou-se que não seria pago o resgate de dez milhões de reais exigido pelos criminosos. A tortura do cativeiro, somada ao enredo da negociação com o fim de resgatar a vítima, contribuíram para minar a resistência do sequestrado e criar um clima nacional de comoção e expectativa. Surgiram por toda parte comentários de que a família do empresário, fomentada pela atuação dos filhos pródigos e outros parentes desunidos, preferia a sua morte , o que deixaria em muito boa situação financeira alguns herdeiros.

Correia, pressentindo um desfecho trágico para a trama, decidiu agir, movido pelo amor de pai. Queria acima de tudo, como sempre o quis, o melhor para Clemêncio. Assim, temendo por sua vida, colocou em jogo os seus milhões. Passando por um parente da vítima, negociou um resgate, com a garantia de uma solução pacífica e incruenta. E tal aconteceu. A família não poupou a alegria do reencontro, mas guardou para breve o ensejo de desvendar o mistério. Correia foi ter com eles. Ao por olho no empresário e confirmar o seu estado, sentiu no fundo do peito a emoção causada pelo cumprimento da atitude que tomara. Não fosse por sua intervenção, disto certificou-se, o homem ali não estaria a lhe contar sua desventura. E, na verdade, não contou, pois, sob recomendações, fora proibido falar sobre o ocorrido, até mesmo com a imprensa.

– Nos impressiona o fato de o senhor, sem conhecer papai, colocar enorme soma à disposição dos sequestradores. Deve haver um razão muito importante par ter feito o que fez – falou assim uma das filhas do magnata na enorme sala da mansão em que recepcionavam Correia.

– Já se vai longe o tempo da minha vida em que o dinheiro falava mais alto do que a união da família. Não me envergonho de mencionar o que já deve ser do seu conhecimento: meu filho está entre os que sequestraram seu pai.

– Mas, então, por que …

– Me perdoe! Sei que sou cúmplice de um crime. Porém, na minha concepção de pai e, acompanhando o sofrimento desta família, julguei ser o mais certo fazer o que fiz. Não houve mortes. Só este fato já é uma grande vantagem, não acha?

– Seu filho está em maus lençóis. Eles não perdoam o crime de sequestro. Será caçado onde estiver e, certamente, condenado.

– Não há dúvida que sim; sei que está perdido. Sofro a dor de um pai sem esperanças. Tentei fugir da realidade jogando fora o restante da minha riqueza para não sabê-lo morto em um confronto que seria fatal, caso não houvesse o resgate. Fiz isto porque sou pai, embora ciente do quão pouco adiantaria.

– Somos eternamente gratos pelo que fez. Não sei o que espera, mas devo adiantar que nossa situação financeira não tem sido, há anos, o que tentamos passar para a sociedade. Vivemos com dificuldades, se quer saber. Não poderemos recompensá-lo.

– Longe disso a minha intenção. Foi por livre vontade que cheguei a esta decisão. –Dizendo estas palavras, despediu-se Correia, levando na consciência a certeza da boa ação que praticara sem uma ponta sequer de arrependimento. Os familiares da vítima mostraram-se impressionados e ainda incrédulos ante a atitude de Correia. Tinham como certo, na sua visita, o pedido de ressarcimento do montante utilizado na libertação do sequestrado. Até tentariam, caso fosse insinuado, uma negociação que viesse a satisfazer a todos. Mas, tal foi a atitude decisiva de Correia em não dar margem a esta hipótese que não tocaram mais no assunto “dinheiro” até finda a conversação e a visita.

E assim ficou a lição que o desenrolar dos fatos deixou a Correia. Pagou o preço do descaso a uma grande dádiva que a vida permitiu que a ele chegasse. Durante os dias áureos e descompromissados que lhe proporcionou a fortuna inesperada, não vislumbrou o benefício que o seu uso sábio e comedido poderia trazer à sociedade a qual pertence. Só pensou em gastar, ostentando a riqueza a qual, se bem utilizada, teria, quem sabe, alterado o rumo de Correia. Voltou ao que era. Sem dinheiro e agora, também, sem emprego. Mas, ouvi dizer que compra uns bilhetinhos de vez em quando.
Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 21/12/2012
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