Amor e ética

Laura nascera e morara em Nazaré Paulista até passar no vestibular para a Faculdade de Medicina da USP. Foi como um passe de mágica. Da vidinha pacata na pequena cidade do interior paulista, a garota ativa passou a morar numa das maiores cidades do Planeta Terra.

Nazaré Paulista, encrustada na Serra da Mantiqueira, entre serras e águas, a mais de 800 metros acima do nível do mar, dista de São Paulo aproximadamente 90 km. O dia a dia das crianças e adolescentes, na época em que Laura morava com os pais, se resumia em ir para a escola e aos domingos passear nas belas e floridas praças do lugar. A quebra dessa monotonia acontecia durante as festas juninas e religiosas, como a Festa do Peão de Boiadeiro e Cavalhada, e a Festa em Louvor ao Espírito Santo, que acontece no último final de semana de junho, quando lhe era permitido deixar um pouco os estudos e se entregar à preparação e à deleitação de tão concorridas e animadas festas. Gostava ela de ouvir músicas folclóricas apresentadas ao som de sanfonas, violas e violões. Ficava fascinada diante destes instrumentos musicais e, ao mesmo tempo, um pouco triste porque a família não tinha condições de arcar com despesas para esse tipo de atividade deleitante. Eles já pagavam um professor particular para ensiná-la Biologia, Química e Física, disciplinas indispensáveis para quem pretendesse passar no vestibular de medicina.

Outro momento agradável na cidade acontecia durante a temporada de inverno, quando levas de turistas se deslocavam para lá, atraídos pelo festival de inverno, que oferecia feira do artesanato regional, festa da orquídea, festival de jazz e uma infinidade de atrações envolvendo cada visitante com aconchego e charme na montanha. O ar puro da montanha e paisagens exuberantes e de grande beleza deixavam os turistas deslumbrados. Era a satisfação do pessoal local.

Laura sempre sonhava em ter vida de turista naquele local, isto é, só visitar Nazaré Paulista no período de inverno, quando a cidade se mostrava mais alegre e cheia de vida. Sempre culpou sua vidinha à condição de moradora daquela pequena cidade, distante de tudo e de todos. O primeiro namorado ela conhecera durante sua festa de quinze anos, no clube local. Nela estavam presentes os amigos Paulo, Guerra, Dão, Gilberto, Arildo, José Carlos Pinheiro, Nivaldo e outros, que dançaram e fizeram a alegria das jovens da cidade ao som de Ray Coniff. Os olhares de Laura convergiram para o de Paulo. Foi namoro passageiro e sem muito entusiasmo. Paulo morava em São Paulo e ela sabia que ao término das férias ele voltaria para a capital paulista. Eles eram muito jovens, ele tinha apenas dezoito anos, muito estudioso, gostava de corrida de carro e outros esportes de aventura. Quando se despediram, trocaram endereços e números de telefone e, ainda promessas de se encontrarem em São Paulo quando ela fosse prestar vestibular, dali há três ou quatro anos. Bastaram poucos meses para eles se esquecerem desse compromisso. Os estudos tomavam todo o tempo dos dois.

Laura passou no vestibular, foi morar em São Paulo, terminou seu curso e residência médica, trabalhou em alguns hospitais, fez mestrado e doutorado, casou-se com Paulo, que também se havia tornado médico, mas sua dedicação aos esportes não o levou a patamares mais altos na medicina. Especializou-se em ortopedia e tinha pequeno consultório para atendimento de pacientes de planos de saúde. Laura, professora da USP, seguia no seu intento de se tornar renomada profissional da área de células-tronco.

A vida transcorria calma, sem muitos atropelos, já que os dois concordaram em uma união sem interferência na vida um do outro. Não tinham filhos e ambos viajavam muito. Ela, para fazer conferências e frequentar cursos sobre sua especialidade. Ele, procurando competições esportivas radicais pelo mundo. Em uma dessas competições, Paulo foi seriamente acidentado e teve como consequência a perda dos movimentos dos membros superiores e inferiores, ele ficara tetraplégico. Prostrado em uma cadeira de rodas, sua vida parecia não ter mais significado. Seu suporte caíra ao chão, graves crises biológicas, psicológicas e sociais ascenderam. Como profissional da medicina, não se achava competente para resolver os problemas de seus pacientes, já que não conseguia resolver o seu. Como esportista, não via perspectiva à prática de nenhuma atividade do gênero. Em casa, o relacionamento com a esposa já não lhe trazia satisfação, pois poucas vezes eles tiveram tempo um para o outro.

Impossibilitado de executar a maioria dos movimentos de uma pessoa normal, Paulo, por sugestão da esposa, contratou Marina, enfermeira profissional, capacitada para aquela situação e pessoa delicada. Formada pela Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, com mais de quinze anos de experiência e especialização em Cuidados em Saúde, e especialista no modelo holístico da medicina, a chamada visão sociopsicossomática, que privilegia fundamentalmente o paciente e a inter-relação entre paciente e médico. É a medicina do encontro. Avaliada por Laura como excelente profissional para atender às necessidades do marido, este arranjo possibilitava que a esposa ficaria livre para continuar a busca pela excelência na sua profissão.

Os primeiros meses de Paulo como paraplégico foram passados em hospital, a segunda fase em clínica de recuperação e fisioterapia. Também tiveram momentos com psicólogos, psiquiatras, para aceitação de sua atual condição, e terapeuta ocupacional. Nada disso acalmou o seu espírito. O que ele queria mesmo era morrer. O primeiro encontro com Marina se deu no hospital, durante sua transferência para casa. A reação foi de rechaçar aquela frágil mulher, que com sua juventude e integridade física não agredida, tentava convencê-lo de que tudo aquilo passaria e ele voltaria a ser uma pessoa normal. Revoltado, ele a mandou para a merda, para os confins do inferno. Calmamente, a enfermeira pegou em suas mãos, ajeitou o seu pijama e falou: - Dr. Paulo, eu não vou curá-lo da paraplegia, mas, garanto-lhe que em poucos meses o senhor, apesar das limitações, será outra pessoa. Poderá fazer muitas coisas que não faz agora. Ela dizia isso tão delicadamente e com convicção que Paulo se calou, pedindo antes para o levarem logo para casa.

Seis meses haviam se passado desde o acidente. Retornar a casa, embora não lhe trouxesse ânimo, trazia-lhe certo conforto, pois não estaria confinado em um quarto de hospital, quase sem receber visitas, sem respirar ar puro, aquele que não fosse contaminado por éter e outras drogas que circulam pelos corredores e apartamentos de hospitais. Embora sabendo que muito pouco mudaria em sua vida, ele estava satisfeito por retornar ao seu quarto, ver as suas coisas, os seus apetrechos esportivos, que não mais seriam usados, lhe trazia certo alívio. Sabia também que não veria a esposa continuadamente, mas isso não o importunava.

Os dias decorriam vagarosamente para Paulo, mas ele a cada dia se afeiçoava mais e mais a Marina, à sua figura delicada e à sua dedicação para com ele. Ela não media esforços para agradá-lo, mesmo quando recebia as patadas dele. Isso acontecia nas ocasiões das sessões de administração dos remédios e das massagens. Outra pessoa que sofria com esta situação era a fisioterapeuta, mulher forte e sempre de cara amarrada. Quando ela saía Paulo sempre perguntava para Marina por que ela não teria cursado fisioterapia. A resposta era sempre um largo sorriso, que o médico sempre acompanhava. Às vezes os dois caiam na gargalhada.

A melhora de Paulo era evidente, tanto no aspecto dos movimentos como no humor. A esposa não dava conta do sucesso do tratamento porque pouco entrava no quarto do marido. Ele não se importava com isso, até desejava que ela nunca mais entrasse, principalmente quando Marina lhe fazia companhia. Ela lia para ele quando não estava em sua hora de serviço, que consistia em aplicar o tratamento prescrito pelo médico que assistia Paulo, dar-lhe banho, vesti-lo e fazer os exercícios recomendados pela fisioterapeuta. Por sua vez, Paulo já saía da cama com mais frequência, e sempre guiado por Marina, passeava de cadeira de rodas pelo belo e extenso jardim da casa. A esposa o havia aconselhado a comprar uma cadeira elétrica, Paulo não concordou, alegando que seria difícil manejá-la. A verdade pura era que ele não queira dispensar a companhia de sua enfermeira nos passeios matinais pelo jardim.

O afeiçoamento era recíproco. Marina estava se apaixonando pelo seu paciente. Sabia ela que o seu comportamento não estava sendo ético, mas, nesses casos, quem manda é o coração, pensava. Ao se preocupar demasiadamente com o paciente, sentimentos mais fortes foram aflorando, sentimentos completamente afastados da relação paciente-atendente. Tinha ela verdadeiro pavor em pensar na possibilidade de Paulo vir a conhecer seus sentimentos. Ele era casado e se encontrava frágil, ela não poderia se aproveitar de sua fragilidade. Por outro lado, ela precisava desabafar, jogar para fora tudo aquilo que lhe sufocava a alma e lhe apertava o peito. E se perguntava – o que fazer? O que dizer? Quando dizer? E como dizer? Ela estava para explodir.

Paulo também vivia angustiado. Não queria perder Marina, mas também esbarrava nas questões éticas. Como uma profissional da saúde agiria se seu paciente declarasse sentir amor por ela? Que queria ter um relacionamento extraprofissional? Mas uma decisão deveria ser tomada de imediato. Em breve ele não mais precisaria dos cuidados de uma enfermeira, já estava habilitado a seguir o seu caminho sozinho. Marina precisava saber de seus sentimentos, sua declaração ou sua omissão implicaria o seu futuro. Uma grande chance existencial acontecerá ou será perdida, talvez para sempre, se não tomarem a decisão que os sentimentos apontavam. Ele também precisaria saber de seus sentimentos – pensava ela. Naquela tarde, conversaram francamente, deixando de lado as questões éticas. Acertaram as coisas do coração e foram viver juntos para sempre, na aprazível Nazaré Paulista.

Como se observa, o campo da relação paciente-cuidadora é campo dinâmico, cenário de múltiplas emoções e acontecimentos.

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 19/12/2012
Código do texto: T4044190
Classificação de conteúdo: seguro