Dançando
Eu vinha andando, a passos sonolentos, pela praça da catedral, quando tomei um baita susto, com um morador de rua, que se encontrava acocorado atrás de um banco de cimento, sussurrando prazerosamente, enquanto despejava seus maus cheirosos excrementos no chão de pedras carcomidas do largo. Sem nenhum pejo; tranquilamente. Sua expressão de satisfação era plena. Durante seu alívio, além de gemer, ele imprecava, de forma divertida, contra os transeuntes que passavam ao seu redor, como se estivesse reclamando da privacidade perdida. Certamente, ele não era mentalmente saudável.
Será que loucos têm pudor?
Saí da praça e segui pela Rua Santa Luzia em direção a Avenida Barão de Maruim. Já na Barão, dobrei a direita, na esquina do posto de gasolina, e rumei até a Praça da Bandeira. Lá chegando, atravessei a larga via, e me direcionei para a Avenida Hermes fontes. O Trânsito estava intenso. Aracaju é uma pequena cidade com o trânsito infernal. São muitos carros, ônibus, caminhões, motos, e poucos pontos de escoamento para tal fluxo de veículos. Caos! Penso, que em poucos anos, não conseguiremos sair mais de nossos carros e viveremos eternamente dentro deles, esperando o fim. Apodreceremos no interior de nossos diletos e venerados automóveis, esperando chegar aos nossos destinos, ao tempo que eles, os carros, virarão sucata, e os engarrafamentos se tornarão depósitos de ferros velhos, com nossos ossos expostos, em plena via pública. Várias fileiras de imensas cobras metálicas inertes. Esqueletos de anacondas de aço sem vida, lembrando o romance de Ignácio de Loyola Brandão, “Não Verás País Nenhum”.
Será que a insanidade se disfarça de desapego?
Na Avenida Hermes fontes eu ainda teria que andar uns bons quilômetros, em linha reta, até chegar ao meu apartamento, no fim da Avenida Adélia Franco.
O dia estava ensolarado, o céu azul e límpido. Durante a caminhada, como de costume, lembrei-me dela. Tem um ano que ela desapareceu. Depois do dia da fuga ninguém mais a viu. Ela sumiu junto com as chuvas do fim de agosto. Dissipou-se como água exposta ao calor. E a convicção de que ela possa voltar, assim como as chuvas voltam todo ano, em sua estação predileta, ainda umedece meu coração.
A imagem do maltrapilho defecando ao ar livre não saia da minha cabeça. E pensar que ela pudesse estar daquela forma, como aquele senil homem, me deprimia. Não obstante a tristeza, achar que ela estava viva era uma dádiva, um alento, um consolo que não me deixava despencar, e que irradiava, em minha alma, uma sutil esperança.
Os primeiros meses foram terríveis. Experimentei todos os sortidos sabores do que poderia ser o gosto do inferno. E eram todos intragáveis. Não ter nenhuma ideia de onde ela estava me angustiava. No entanto, as notícias desencontradas, aliadas as falsas e infames informações, eram, sem dúvida, o que mais feriam. Com o tempo o amargor se abrandou, transformando-se numa resignação insossa; insípida. Nada mais me nauseava.
Numa manhã de janeiro, quando voltava do centro da cidade com meu carro, depois do serviço, pensei tê-la visto na praça da igreja matriz. Vi uma mulher que dançava. Era muito parecida com ela. Seu vestido branco, encardido, balançava no ritmo de seu corpo. Seus cabelos longos e negros esvoaçavam ao vento. Estava descalça. Seus braços estavam voltados para o céu e ela girava, sorria; gargalhava. Parecia não se importar com olhares alheios. Parei o carro o mais rápido que pude e fui até a praça. Quando cheguei, ela tinha sumido.
Jamais soube se era ela de verdade. Pode ter sido uma miragem, uma ilusão. Somente uma pessoa muito parecida com ela. Não sei. Além do mais, ela não era de dançar. Mesmo assim, daquele dia em diante, deixei de ir trabalhar de carro, para poder voltar para casa andando, com a esperança de revê-la.
Meus olhos, enquanto caminho, perscrutam tudo; em vão. Nunca mais vi a moça, a dançarina, que tanto me lembrou dela.
Será que a loucura liberta?