Um dia de cão
Um dia de cão!
Acordou com o grito da mãe!
— Levanta!
Meio que atordoado por conta de um pesadelo onde se via caindo em um precipício cheio de dejetos, Marsal deu um salto da cama.
Esfregou a remela dos olhos, deu o último bocejo pensando que ainda tava dormindo, ia mesmo agradecer ao Nosso Senhor pela interrupção do pesadelo, mas nem deu tempo. A mãe tava ali ao pé da cama:
— Tá perdendo a hora!
Ainda sem entender direito correu as pressas pro banheiro com aquela vontade de se desapertar. Tentou desamarrar o cordão do bermudão de dormir, tentação das profundezas dos infernos! A peste teimava em não abrir.
Cada vez que, no desespero, ia desamarrando o nó, com licença da palavra, mais a desgraça do cordão se apertava num nó cego que, o jeito foi começar a urinar; primeiro uns pingos na cueca, depois um jato de alívio em toda roupa de baixo.
Arre égua que ninguém é de ferro!
Só depois de se urinar todo foi que se lembrou da tesourinha da mãe no armário bem ali na sua frente. Nervoso com a falta de tino apanhou a tesourinha e cortou cordão, elástico, cueca, todo o bermudão e, só não cortou os troços, porque ainda lhe restava um pouco de razão, muito embora o nervosismo!
Como se sabe aqui em São Paulo a vida é meio complicada...
Complicada não, complicada é modo de falar de paulistano. A vida aqui é mesmo de lascar o cano! Mora-se nos quintos e vai-se trabalhar nos cafundós onde o Judas perdeu as botas! Foi por isso que Marsal meio que dormindo, depois da tragédia do xixi descontrolado, saiu ainda com o gostinho de cama quentinha; apanhou a marmita, e depois de tropeçar na mesinha de centro da sala e derrubar um vasinho de flores, presente de casamento da mãe, viu-se finalmente na rua, ainda a tempo de ouvir o grito da velha:
— Marsal!
Nem se deu ao trabalho de ouvir a sentença final:
— Mijou na cama, e ainda por cima quebrou meu vaso!
Chegou ao ponto dos coletivos com os bofes na boca de tanto correr os dois quarteirões que separavam sua casa do ponto de ônibus fretado pela empresa.
Estranhou a demora do fretado, teria o motorista também se atrasado? Ficou ali cismado, tanta correria pra no fim ficar naquela maçada!
Resolveu ver as horas. Todo mundo sabe que no mundo moderno, jovem já não anda por aí com objeto tão antiquado, patacão desajeitado e atrasado a enfeitar o pulso! A onda agora é no mínimo um celular ou um “aipond” como dizia o tio metido a autor de romances!
Riu da burrice do velho poeta, tão metido a escritor, era um tal de, sou ficcionista como o Chico Buarque...
Ai coitado, nem inglês direito sabia, vivia toda hora a confundir o bom e velho português com o inglês... Tipo, iphone, por “aipone!” hilux (marca de carro, o velho era doido por carros) por “ilux!”
Deu vontade de rir da ignorância do tio, conteve-se. Ainda mais que chegara gente no ponto de ônibus, uma gatinha daquelas de deixar a gente que nem cachorro vendo frango assado rodar no espeto daquelas máquinas de padaria barata, Enfim...
Abriu a mochila onde estava o lanche que a mãe preparara e, procura que procura, nem sinal do celular! Pra tirar a dúvida despejou tudo no banco do ponto de ônibus, e nada! Sentou no banco, conferiu os bolsos e o bendito smartphone não aparecia o que fez deduzir que o esquecera em casa. Levantou os braços:
— Pô!
Notou no delicado pulso da gatinha que acabara de chegar um minúsculo relogiozinho com pulseira rodeada de flores delicadas tão graciosas quanto a delicadeza da formosura ali presente. Resolveu se orientar:
— Pode me dizer as horas?
Quando a garota, com toda a doçura de uma deusa, tipo musa de inspiração de qualquer poeta informou a hora, quase deu um troço ao ouvir a voz de veludo, por trás daquele sorriso no rostinho que mais parecia uma divindade, musa, ninfeta inocente ou coisa que o valha. Ao mesmo tempo sentiu um desconforto ao comprovar que estava adiantado em mais de meia hora! A mãe o acordara no mínimo uma hora antes!
Pensou que pensou, mas não muito, quem pensa em demasia é aposentado quando tem que fazer um crediário; por isso arrumou as coisas de volta na mochila e desembestou na carreira outra vez pra casa, a fim de apanhar o celular.
A mãe não atendia a porta, era já a enésima vez que apertava a campainha e nada! A velha na certa tava dormindo a sono solto. O jeito foi apelar pro modo antigo. Abriu a boca num berro!
— Mãêêê!
A velha veio arrastando a sandália porta afora, soltou a bronca, que mãe também se irrita, ainda mais diante de um pirralho com umas penugens de fio de barba na cara arrastando asas como se fosse homem feito.
— Que é que foi, perdeu o ônibus?
Ele explicou que ela havia perdido a hora e o havia chamado mais cedo.
— E daí! Ela respondeu rispidamente.
Aquele “e daí!” saído assim de um sentimento meio que agressivo, foi o bastante pra ele enfiar o rabo no meio das pernas e adocicar a voz numa explição:
— É que esqueci meu celular... Traz meu boné também, acrescentou.
A mãe entrou outra vez em casa, voltou com o celular e o boné na mão:
— Vê se não enche mais, e quando receber no final do mês, trate de comprar outro vaso igualzinho o que você quebrou!
Tentou responder uma malcriação, mas a voz que saiu foi miudinha, submissa, que ele não era doido de falar alto pra mãe, a velha era baixinha, mas era braba, Deus o livre!
— Brigado mãe...
De volta ao ponto, com o boné atravessado como se fosse jogador de futebol, quem bota boné direitinho na cabeça é velho metido a jovem como o tio metido a escritor! Ai, coitado... Mocidade usa boné que nem o Neimar!
Quando dobrou a esquina viu, para seu desespero, o ônibus da empresa parado já na hora de sair, chegou no ponto com a língua pra fora que nem cachorro de rua em dias de sol!
Na aflição de embarcar nem reparou que de tanto correr começara a transpirar, daí se lembrou que não se desodorizara, o mau cheiro de desodorante vencido começou a incomodá-lo.
O motorista já havia engatado a primeira marcha quando ele bateu desesperado na lateral do ônibus forçando o busão fazer uma parada extra, se desculpou com o motorista que o encarava meio que com a cara amarrada e foi aguentar a gozação dos colegas:
— Vambora, lesma!
Outro:
— Alguém tem uma cama aí?
Apesar do sorriso amarelo e da cara de besta, era meio que cara-de-pau; nem ligou pra gozação. O pessoal da fábrica é mesmo assim, gozador, mas no fundo é tudo gente boa.
O estabelecimento industrial parece que nivela as pessoas; dentro da fabrica, diante dos fornos ou das forjas, são todos iguais.
Avistou no último banco, por coincidência ou não, a gatinha de relógio delicado e voz de veludo. Era a primeira vez que via a deusa encantada no fretado, na certa havia acabado de ser contratada, abriu um sorriso maroto, e foi se assentar ao lado daquele souvenir de carne e osso:
— Com licença...
A garota não deu a mínima e ele se interiorizou buscando uma frase pra ver se conquistava aquela deusa.
O que não contava era com aquela vontade de se desapertar! Pois só foi o busão se por em marcha e vir, tentação das profundezas! Aquela dor de barriga mais incômoda que a, com licença da palavra, dor de parir que as mulheres dizem ser insuportável! (graças a Deus nunca pari).
Pois não é que a tal da barriga em conivência com o mestre fiofó resolveu lhe atazanar a idéia e o raciocínio? A coisa foi apertando de tal modo que, tava vendo a hora de se borrar ali mesmo, ao lado da divindade, musa, ninfeta inocente ou coisa que o valha, em pleno trajeto e dentro do ônibus!
Foi ficando amarelo, roxo, azul, de todas as cores possíveis, que mais parecia camaleão quando se camufla cheio de cores pra escapar de algum predador! Foi aí que a desgraceira aconteceu, primeiro sentiu uma coisa quente e mole no rabo! De nada adiantou ele contrair tudo: pernas, bunda, mestre-cú; porque, depois, seguido de um indiscreto peido, veio dona merda, com todo direito de espalhar seu odor horroroso pelo ônibus afora!
A semideusa de voz de veludo e pele mais delicada do que boneca de louça, aquela divindade, ninfeta, musa ou coisa que o valha, tapou o nariz e se voltou pra ele cheia de surpresa!
Antes da garota indagar qualquer coisa ele foi logo adiantando:
— Nem precisa perguntar nada, me caguei todo!
A garota virou-se para a janela do fretado, fechou a cara e só não se levantou porque não havia mais poltronas disponíveis.
Merda todo mundo sabe, mal vem ao mundo e logo espalha seu odor característico; para aflição do nosso amigo a fedentina espalhou-se pelo ônibus afora, e os comentários viraram gozações:
- Um peido desses é merda encanada!
Outro:
- O sujeito que soltou esse pum, pode tratar de fazer um transplante de cu!
A garota, voz de veludo, bibelô humano, Ninfa de Homero suplicava:
- Chega mais pra lá, por favor...
- Não posso! ele respondia aflito.
Bom, depois de quase uma hora de trajeto finalmente Marsal atravessou a portaria às carreiras e imediatamente se dirigiu para o banheiro.
Depois de esvaziar o intestino e jogar a cueca no vaso de lixo, o jeito que teve foi cair numa ducha pra só depois se dirigir para o vestuário.
Botou a mochila no chão, meteu a mão no bolso em busca da chave do armário, e pra seu desespero a dita cuja havia desaparecido! Esvaziou a mochila que, acostumada, já tava de zíper aberto. Espalhou tudo no chão e, nada! Ficou na dúvida se esquecera em casa ou se naquela aflição primeira, a chave caíra no ponto de ônibus. Já tava perdendo a hora de se apresentar na seção, mas teve que correr à portaria para ver se o guarda tinha uma cópia da chave. Não tinha!
Foi o jeito ir até o chefe e contar a situação, certamente iria levar “uma comida de rabo!”
Comida de rabo para quem não sabe é aquela reprimenda que deixa o sujeito mais baixo que uma galinha e com vontade de enfiar a cara no próprio rabo!
Para sua surpresa o chefe além de não ligar, ainda lhe emprestou a própria chave do armário para que ele se trocasse, com a recomendação para que a devolvesse no final da tarde, claro!
Trabalhou que trabalhou! Tranqüilo o dia inteiro, o único incidente pra coroar aquele dia que ele jurava riscar do mapa, foi na hora do lanche ter comprovado que na aflição de procurar o celular no ponto, havia esquecido seu pão com queijo e presunto no banco do ponto de ônibus.
À noite estava em casa, família reunida, mesa posta e ele contando as peripécias daquele dia, menos é claro, a borrada na calça que ele dera em pleno busão.
A mãe ouvia e explicava que, mais tarde quando ela se levantara encontrara a chaves do armário no bolso da outra calça que ele pusera pra lavar.
— Como foi que você se trocou? perguntou a velha.
— O chefe me emprestou as chaves do armário dele
— Ainda bem exclamou a mãe.
— O pior vocês não sabem?
— O que, pergunta o pai.
Ele abriu um sorriso amarelo, desses que criança dá quando surpreendida em alguma travessura:
— Eu me esqueci de devolver as chaves do armário do chefe!
E a mãe:
— Marsal!
— Esse cara vai levar a maior comida de rabo amanhã! Ajuntou o pai.
Cabo Frio, 14/12/2012
Olympio Ramos