Ouviu sons de chinelo na calçada. Aguçou os ouvidos debruçou-se na janela. O peito ofegante à espera daquela, cujos passos cadenciam o compasso e as batidas ritmadas de seu coração. Transeuntes num vaivém vão, outros vêm e passam apressados. Tudo alucinação... .Que pena! Não era Vannini. Era Vitalino, artesão nordestino, seguido pelos bonecos de sua criação.
Fernão dizia que fora seguido por um disco voador, que uma luz tentou sugá-lo para dentro da nave.
— Para com essas coisas! Para que te quer um extraterrestre?
— Então não acreditas também que tua mãe me aparece cercada de diabos querendo me levar paro o inferno?
—Minha mãe era uma mulher justa e acreditava na ressurreição dos mortos. Não por merecimento de sua pobre alma, mas por misericórdia de Deus. Se os justos vão para o céu, ela está no céu. Portanto, não lhe fará mal algum.
E se irritava. Pensamentos hostis, estranhos e às vezes agressivos se manifestavam nele. Calmamente Vannini trazia chá-de-jasmim e um comprimido, mas Fernão os recusava.
—Ontem não tomaste o remédio nem o chá? Beba e vê se não interrompe mais o tratamento!
Ela agia com paciência e cautela para não contrariar o marido, e assim, quando convocada para cobrir a falta de algum colega, deixava recado sobre a mesa, na tela do computador ou no criado mudo. Sempre estava disposta a servir a empresa, que lhe pagava em dobro pelo cumprimento de serviço em regime de urgência. Suportou com resignação todo o sofrimento advindo do convívio com Fernão até quando pôde. Mas desta vez, em poucas linhas, fez a mente dele dar um giro de trezentos e sessenta graus em torno de sua história, em torno do casamento com ela e dos sete anos de espera por um filho que não veio. Fernão abriu a porta do apartamento. Não havia ninguém em casa. Logo, pensou que sua mulher estivesse fazendo trabalho extra, cobrindo escala... Abriu as cortinas da sala e depois do quarto. Sobre o criado estava o bilhete deixado por sua mulher.
 
Meu teste de fertilidade deu positivo, e recusas fazer o teu. Ainda assim me insultas dizendo que eu não sirvo nem pra parir. Voltarei para assinar o desquite.
 
E rabiscou seu nome de solteira: Vannini Saboia Norato, deixando sinais de pouca firmeza no punho e muito tremor no coração. Ele tentou abrir a janela da sala como se o fizesse para libertar um pássaro da gaiola e foi impedido por um temporal que desabava lá fora  do tamanho da dor que invadia sua alma. Sete anos de casado e tudo somado não era nada, nada que pudesse impedir a separação. Ele não podia mais esperar que cessassem ventos e trovoadas e uma nova estação se lhe surgisse, trancado entre quadro paredes de um apartamento. Cansara de esperar que a mulher voltasse e ela não voltou, então, rasgou o  luto da separação e  saiu. Tomou o trem e desceu na Estação Carioca.
Na estação, Talita  se sentiu seguida por um homem de terno escuro cujo rosto lhe pareceu familiar. Olhando-o fixamente, reconheceu nele a imagem do passageiro que lhe dera o telefone anotado em um pedacinho de papel. Ela jamais diria que lhe telefonara durante dias seguidos... Por sorte, Fernão a poupou deste constrangimento, informando-a de que estivera fora do Brasil. Ela desceu na Estação Carioca e entrou na Suport Informatic. Ele a acompanhou.
 — É mais um freguês,  pensou Talita.
Fernão indagou  o preço de uma placa-mãe para seu NOTEBOOK ADM TURI. Pagou e retirou-se, não sem antes filmar com sua retina o perfil da balconista sorridente que dizia: “Volte sempre!” Logo que ele se retirou, curiosamente, ela  leu na segunda via da nota de balcão: Fernão de Noronha Capelo — Praça General Osório...  Àquela hora o prédio da Rio Branco estava praticamente vazio. Fechou a loja e passou na confeitaria. Por lá sempre aparecem jovens, pessoas mais velhas com ar de intelectual,  e empresários que fecham grandes negócios, enquanto tomam o chá das dezessete e trinta. Contemplou cinco enormes prateleiras que guardam a beleza das taças de cristal bordadas em ouro. O telefone móvel  tocou. Atenta, ouve a voz suave de um interlocutor que não lhe permitia falar.
— Não nos encontraremos mais no primeiro vagão, naquele horário da manhã — respirou  fundo e disse pausadamente — logo mais estarei na Confeitaria. Preciso falar pessoalmente com você.
Ela esperou.
Mil e um pensamentos passaram em sua mente. “Será que vale a pena? Pode não dar em nada esse encontro. Talvez sim, talvez não, quem sabe!” Novamente Fernão tomou o metrô, desta vez, em sentido contrário. Voltando... As palavras de Vannini ainda ressoavam no fundo de sua alma: “Vá de táxi”, dizia quando notava que o marido não tomara o comprimido na noite anterior, porque os sinais de abstinência eram visíveis: mostrava-se irritadiço, não queria comer ou comia demais. Dormia tarde e acordava muito tarde e se dizia perturbado, muito perturbado com a voz da sogra a ecoar em seus ouvidos: “Louco, você é um louco!...Deixe minha filha em paz...”
Ele não podia ser contrariado. Aquilo que lhe era negado insistia até conseguir. Mas, não era momento de pensar naquelas coisas. Tinha horário marcado na confeitaria com a moça da loja de informática. Obsessão! Talvez àquela hora sua mulher estivesse nos braços de Hemor. Seria mais prudente então, empreender uma nova conquista que disputar o amor de Vannini com o aviador.
Naquele final de tarde, Talita bebeu água no poço de Jacó e deu também de sua água ao samaritano. Foi o primeiro encontro. Fernão a levou em casa e se despediu dela com um ingênuo beijo no rosto. Ela retribuiu com outro um pouco mais ousado. Ele dissimulou. Tentou mostrar-se emocionado, mas não sabia se estava fortemente afetado pelo efeito da dose dupla de fumarato que tomara ou enciumado com as imagens que fazia de  sua mulher nos braços de  Hemor. Fitou Talita demoradamente. A moça  tinha sorriso  doce e sobre os cabelos negros, uma rosa vermelha guardava harmonia com as vestes. Ele olhava e via nela o rosto de Vannini. Não sabia muito sobre  Talita, nem mesmo que figurava nos registros de memória dela apenas um casamento que não  aconteceu. Foi cauteloso, jamais fizera convite direto para ela conhecer seu apartamento e os encontros na confeitaria, bares e restaurantes tornaram-se mais frequentes.
Outro dia, ele parou com ela, de carro, defronte ao prédio em que morava e disse:Volto logo, só vou pegar um chaveiro de memória... Se não se incomodar com a bagunça, suba! Deves imaginar o que é um homem sozinho em casa.” Ela subiu mais pela curiosidade de saber como é um “homem sozinho em casa”.
Realmente, o apartamento estava em total desordem: copos na pia, panelas sujas sobre o fogão e roupas jogadas no sofá. Mas, sem demora, Fernão desconectou o pen drive de seu computar e  enfiou-o no bolso. “Se quiseres, já podemos ir, ou vais ficar para lavar a louça?” Disse com ar de riso, estendendo-lhe a mão. Abriu a porta e saíram devagar. Na escadaria, deu  um beijo no rosto dela, que  parecia mais uma caricia de pai, um amor diferente, um amor que inspira confiança.
O Notebook estava no carro, seria ainda aquele para o qual comprara uma placa-mãe? Talita não entendeu por que Fernão chamou o pen drive de chaveiro. Segurou a curiosidade, nada perguntou. Talvez ele não quisesse interferir na memória profissional dela. Andaram pouco, sem qualquer direção, praticamente calados até que o rapaz irrompeu o silêncio:
—Posso levá-la em casa? Tenho um trabalho a fazer no escritório, com certa urgência!
— Pode sim, pode sim...
Agora ela tinha um homem... Se nascera fadada a virgem vestal, julgava haver cumprido a missão: viveu trinta anos de castidade e, mesmo correndo o risco de ser atirada do monte Capitolino, tinha agora um homem pra chamar de seu. Poucos dias depois, novamente ele fez outra parada no apartamento. Parecia  um convite   para ela entrar. Desta vez não criou a desculpa de pegar um pen drive, simplesmente, disse:
—Demorarei pouco. Vou tomar banho e arrumar para sairmos. Se quiseres me acompanhar, garanto que não tem prato sujo na pia.
— Tenho sede. Vou subir. Espero que os copos também não estejam  sujos na pia.
Era quase possível ver o nervosismo dele refletido no soalho.  Não havia roupas espalhadas no chão. Nada sujo na pia. Tudo limpo e arrumado revelava a obra de uma boa diarista. Pratarias, talheres, cristais e vinhos sobre a mesa lembravam, guardadas as proporções de espaço e posses, o salão de chá da Confeitaria Colombo. Talita vasculhava com o olhar tudo que suas vistas alcançavam. Precisava explorar o máximo que pudesse, sem tocar em nada, enquanto ele tomava banho.
O tempo não lhe pareceu tão longo. No banheiro, Fernão criava frases, fazia e desfazia abordagens dirigidas ao espelho, acompanhando e refazendo os movimentos para corrigir gestos labiais e frases que não podiam ser feitas por encomenda. Queria ser autêntico. Temia assustá-la se saísse de roupão, ou quem sabe, no susto ela deixasse escapar um “Oh!” Preferiu não arriscar o roupão. Quem sabe uma bermuda, uma roupa caseira mais leve?...
—Demorei muito?
— Nem tanto! Agora preciso ir ao banheiro.
 A banheira de hidromassagem estava coberta de pétalas. Pétalas de rosas vermelhas, da cor dos lábios dela.
Relaxou e disse sorridente ainda saindo do banho.
— Gostei da surpresa. Não sabia da banheira com pétalas.
A garrafa de vinho que Fernão abriu, não chegava a ser um rare wines. Mas, tinha nome estrangeiro e a indicação da safra 1977. Ela não conhecia a marca GROUPIE. Nem tinha certeza da tradução. Pensou, pensou até se lembrar  de  já ter visto aquela inscrição nas camisetas que Tília usava por baixo do uniforme como um pacto com seus ídolos.Mas, vinho com aquele nome, nunca tinha visto. Talvez Fernão tivesse mandado rotular por encomenda a algum vinhateiro.