A terra, sob o chão de asfalto

"""A terra... Nada mais brutal do que ela. Achar que é aqui a nossa morada perfeita é pura ilusão, assim como é ilusão o mito de que estamos na terra para sermos felizes. Uma miragem. O corpo que insiste em permanecer inteiro se desfaz aos poucos, nada mais funciona, nem o comer, o beber, o urinar, depois é o frágil tecido cerebral que enrijece e não consegue captar mais os sinais que vem de fora. Lá no mundinho apartado da senilidade, o que funciona são os lampejos de pensamentos do passado, gente que já morreu, memórias destinadas ao esquecimento, onda que se quebra na areia, energia que se desfaz no ambiente já tão fatigado de levar porrada. A vida... Um fenômeno secundário da energia dispersa no ambiente, que antes de se desfazer para sempre, reúne elementos temporariamente, em torno de um núcleo de dor. Trabalhamos, infatigavelmente, para manter a construção vã durante um pequeno lapso de tempo, a vida, como um bolor, vai tomando conta da terra, essa fruta mofada; mofada e estragada""".

Caminhava pelas ruas apinhadas de gente, enquanto pensava, a terra recoberta por uma grossa camada de cimento, eis aí o mofo de que estava falando, caminhava e pensava na terra, olhando o chão da cidade e imaginando a grossa camada de cimento e asfalto que o isolava da terra, a verdadeira e real terra que permanecia escondida sob seus pés, nesse ambiente que só os humanos entendem, com os seus símbolos de advertência a serem respeitados pelos humanos, e só por eles, e que nenhum animal pode conhecer.

O sinal fechou. Aguardou debaixo do guarda-chuva, enquanto o metal pintado dos automóveis deixa traços coloridos que não consegue distinguir. Então é a hora de voltar para casa! Até amanhã, mundo que hoje não vi, mas que, acredito está em algum lugar, germinando as sementes da vida. Talvez possa ver um pedacinho dele na televisão, deve ter alguém escalando o Himalaia, ou algum petroleiro se partiu em dois, e está derramando milhares de toneladas de óleo viscoso nas praias de Bora-bora. Ou algum homem-bomba mandou pelos ares algum monumento famoso, aventuras televisivas com audiência garantida. Vamos. A torneira se abriu do outro lado, e os carros escorrem, com chiado de água nos pneus. As britadeiras trabalham em hora extra, debaixo de chuva, para acabar a estação do metrô de Copacabana, dentro do prazo da governadora. Logo vamos poder nos enfiar nos buracos bem estudados do metrô. Pôde divisar, no escuro um pouco de terra sendo removida pelos operários. Aqui debaixo tem terra – pensou – terra de verdade e uma vida primária que continua existindo, a vida que brotará novamente quando estivermos extintos. Comprou o pão e o leite e logo estava no elevador. Entrou em casa e sentiu o cheiro perfumado de cera sintética e a beleza das frutas de plástico sobre a mesa. Ligou a televisão para ver o que aconteceu no mundo.